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BOLETIM DO NCH Nº 15, 2006
OBRA DE PEDRO DA SILVEIRA. ENSAIOS. ESTUDOS
Francisco Cota Fagundes
Da migração e do exílio na poesia de Pedro da Silveira
  Index
Sumário
Summary
Introdução
A partida
O retorno
Exílio insular e extra-insular
Considerações finais
Bibliografia

  Fagundes, F. C. (2006), Da migração e do exílio na poesia de Pedro da Silveira. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 77-104.

Sumário: Este estudo foca a poesia de Pedro da Silveira de temática migrante (em oposição a emigrante) e exílica. São abordados, em particular, os poemas relacionados com a experiência migrante da partida, do regresso, do exílio insular e do exílio extra-insular, estando este último na origem de poemas relacionados com o que aqui chamamos a busca da ilha, busca essa que resulta, quanto a este leitor, em algumas das mais destacadas inovações temáticas no corpus poético silveiriano.
  Fagundes, F. C. (2006), On migration and exile in the poetry of Pedro da Silveira. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 15: 77-104.

Summary: This study focuses on the themes of migration (in contradistinction to emigration) and exile in the poetry of Pedro da Silveira. Attention will be focused on poems related to the migrant experiences of departure and re-entry, and on insular and extra-insular exile, the latter category bearing a close relationship to what we here term the search for the island, a search that results, in the opinion of this reader, in some of the most noteworthy thematic innovations in the Silveiran poetic oeuvre.
  Francisco Cota Fagundes – Department of Spanish and Portuguese. University of Massachusetts Amherst. Amherst MA01003 U.S.A.
  Palavras-chave : emigração, migração, exílio, partida, chegada, regresso, viagem, exílio interno, exílio externo, poesia de temática corográfica, açorianidade. Key-words : emigration, migration, exile, departure, arrival, re-entry, voyage, internal exile, external exile, poetry based on chorographic themes, ‘azoreanity’ .

Introdução

Para quem tenha alguma familiaridade com o corpus poético de Pedro da Silveira, não é difícil constatar que a sua poesia está, em grande parte, orientada para a temática da emigração, da migração e do exílio. Ao primeiro destes três lexemas dediquei eu um extenso ensaio reportado unicamente à colectânea A Ilha e o Mundo (1952) (Fagundes, 2003: 147-177, 343-346). Tematicamente a poesia silveiriana da emigração corre linhas paralelas com a história da emigração açoriana para a América e, em escala muito menor, para o Brasil, focando sobretudo a da vaga emigratória de fins do século XIX e princípios do século XX. Embora haja um número considerável de poemas que se relacionam com experiências de emigrantes pertencentes à família do poeta, no que respeita ao lexema emigração a poesia de Pedro da Silveira assume a máscara do historiador e testemunhador da epopeia, dos dramas e dalgumas alegadas glórias dos emigrantes, incluindo de membros da sua própria família, não descurando tão-pouco, embora em escala menor, a evocação dos primórdios da povoação dos Açores assente na (i)migração de portugueses do Continente e na vinda, para o arquipélago açoriano, de flamengos e de gentes de outras procedências. Os poemas da emigração de Pedro da Silveira – que não se restringem ao seu primeiro volume de poesias, mas enformam, em grau diferente embora, a totalidade do seu corpus poético e emprestam-lhe um cunho ideológico marcadamente social ou neo-realista – têm alguns pontos de contacto temático, aliás bastante aparentes, com a produção poética de poetas da Claridade caboverdiana, avultando de entre eles Jorge Barbosa. O presente trabalho pretende chamar a atenção não para a emigração mas para a migração e o exílio pessoais (ou apresentados como tal) na poesia de Pedro da Silveira, focando principalmente, embora não exclusivamente, os outros três principais livros de poesias suas: Sinais de Oeste (Silveira, 1962), Corografias (Silveira, 1985) e Poemas Ausentes (Silveira, 1999). A migração é aqui concebida na sua acepção corrente de mudança duma região para outra do mesmo país, o que, no caso do Poeta, significa dos Açores, e particularmente da ilha das Flores, para o Continente português. Um dos aspectos mais tematicamente notáveis da poesia de Pedro da Silveira é que ele vive a migração dos Açores para o Continente em grande parte como se ela fosse uma emigração e um exílio.

Os momentos mais insistentemente e reiteradamente focados pelo poeta são a partida da ilha e a chegada à terra de acolhimento/desterro; e o regresso, sendo esta última fase da experiência migratória poetizada em várias das modalidades que medeiam entre a euforia do reencontro e a disforia do desencontro e da sensação de perda. Não admira que os momentos privilegiados na poesia da migração tenham a sua contrapartida na poesia silveiriana da emigração propriamente dita – em que os que partem da sua terra e, por vezes, regressam são os emigrantes. A temática do exílio, na medida em que é separável da temática da migração (e as duas andam, pela maior parte, como seria de esperar, intimamente unidas na poesia em epígrafe), reveste duas modalidades: o exílio insular e o exílio extra-insular. O exílio insular tem a ver com sentimentos de insularidade, de nostalgia e mal-estar no espaço da ilha e tem um parentesco muito próximo com a poesia do conterrâneo florentino Roberto de Mesquita. É de notar que o exílio insular nunca, em nenhum poema de Pedro da Silveira, se traduz no desejo de regresso ao Continente, onde o poeta passou mais de 50 anos da sua vida! O exílio extra-insular é enformado pela ausência-tornada-presença da ilha – que se concretiza, por vezes, na ilha das Flores, mas que pode significar os Açores em geral, ou, em casos mais raros, uma ilha mais abstracta passível de leitura inclusivamente arquetípica. Esta vivência exílica extra-insular, conquanto possa ter muito de existencial, não deixa de, como se verá oportunamente, revestir atitudes marcadamente ideológicas e ostensivamente identitárias. A obsessiva procura da ilha ou de sinais de ilha por toda a parte – dentro do Continente português e até no estrangeiro, na literatura e na realidade – é um dos aspectos mais inovadores nesta poesia denominável de exílio extra-insular.

Embora a separação das temáticas aqui denominadas migração e exílio também sejam feitas por conveniência expositória, desejaria, desde já, frisar o que entendo, com base na poesia em epígrafe neste trabalho (pois de momento não tenho pretensões a elaborações teóricas para além do corpus poético aqui focado) algumas diferenças entre poemas de migração e poemas de exílio, tendo sempre em conta que as duas vertentes temáticas podem coexistir no mesmo texto e que a identificação de uma ou outra dessas temáticas e suas nuances terá sempre tanto (ou mais) a ver com as concepções apriorísticas do leitor (baseadas, entre outros factores, na sua formação e orientação intelectuais e nas suas próprias experiências emigratórias, migratórias e exílicas) do que com elementos universalmente aceites. Existem, como é sobejamente sabido, definições e explicações, da parte de literatos, antropólogos e psicossociólogos a que podemos facilmente recorrer, do que constitui uma experiência emigrante (cf. Lewis et al ., 1986; Wheeler, 1980; Hoerder et al ., 1993; Mahler, 1996; Mageli, 1991). A literatura teórica sobre o exílio (interno, externo, e de vários outros tipos) é notoriamente vasta (cf. Tabori, 1972; Gurr, 1981; N kosi, 1983; Ugarte, 1989; Knapp, 1991; Said, 2000: 368-381; Ilie, 1980). Frente à praxe deste ou daquele poeta, porém, qualquer definição tem de se tornar maleável. No fundo – e nesse princípio se baseia, em grande parte, este trabalho – são os próprios escritores que, no seio das suas obras e aos olhos dos leitores atentos, trazem, em graus distintos de latência, é certo, as próprias concepções que os enformam e iluminam. O que aqui se entende por migração assenta primordialmente numa experiência corográfica, de mudança de um lugar para outro, para residência mais ou menos permanente. A essa corografia (e note-se que um dos livros de Pedro da Silveira se intitula, precisamente, Corografias), estão, implícita e explicitamente, aliados movimentos de vária ordem – sendo os aqui privilegiados, como já se indicou, a partida, a chegada e estadia no local de acolhimento, e o regresso ao lugar de origem para, nalguns casos (e é esse o caso com a poesia de Pedro da Silveira), se encetar novo ciclo. Não pode haver poesia de emigração/migração sem, que mais não seja, uma partida (do sujeito lírico enquanto experienciador ou testemunha de mudanças) e uma chegada. A estas experiências migratórias estão ligadas, desnecessário será afirmá-lo, outras experiências afins e toda uma gama de sentimentos como os que enformam a poesia de Pedro da Silveira e que aqui designamos por exílicos: a sensação de ausência da terra de origem; uma transformação afectiva da terra de origem na consciência do desterrado; e a sua busca, inclusive em outras terras. Na poesia silveiriana, os Açores, vistos de fora, tendem a ser idealizados e inspiram desejos de regresso e tornam, como sói acontecer em obras exílicas, o local de residência um espaço de desconforto psicológico e emocional. Quando relacionado com vivências dentro dos Açores, sobretudo na ilha das Flores, a experiência exílica tende para o complexo de sentimentos de insularidade e traduz-se por vezes em desejo de evasão.

Tradicionalmente, o que tem distinguido, na literatura portuguesa (e não só), a obra da experiência i/emigrante da obra exílica é que a experiência emigrante, geralmente expressa na terceira pessoa (embora baseada, nalguns casos, em experiências pessoais do seu autor: um Ferreira de Castro, um José Rodrigues Miguéis, um Manuel Alegre, um Onésimo Teotónio Almeida, um José Francisco Costa) está orientada sobretudo para o social (Emigrantes, A Selva; Gente da Terceira Classe; a poesia da emigração de Manuel Alegre; (Sapa)teia Americana; Mar e Tudo), ao passo que a obra exílica (que na poesia tende para o pessoal e tem o “eu” como sujeito, em oposição a tender para o social e a ter o “tu” e o “ele/a(s)” como foco) é de carácter mais interiorista (e quantas vezes mítico e arquetípico), está menos dependente de lugares (quantos exilados há nas suas próprias terras; e quantos o são de etapas da sua própria vida, por exemplo, a infância!), tende a concentrar-se sobretudo na experiência existencial, daí decorrendo uma temática geralmente mais intelectualizante do que a temática que enforma o texto de experiências (e)migrantes. (Lembremos, por exemplo, muita da poesia de exílio de Jorge de Sena e algumas obras de cariz exílico de José Rodrigues Miguéis.) Na poesia de Pedro da Silveira, a emigração é comunicada como discurso na terceira (“eles”) ou na segunda (“tu”) pessoas. A (e)migração tende a ser um estado, passível de transformação, pois assenta necessariamente em aprendizagens que de negativas podem converter-te em positivas e de positivas em negativas, ou intermediárias entre estes dois extremos. O emigrante é, para parafrasear o romance de Cristóvão de Aguiar, um passageiro em trânsito, não estático. Está hoje aqui ou assim, mas poderá, amanhã, estar acolá ou e de outra maneira, por vezes revezando-se a terra da promissão (que inicialmente tendo sido o país almejado, pode, num processo de inversão, passar a ser o país de origem para depois, retornado o emigrante e desiludido, voltar a ser o país de acolhimento, num ió-ió de sentimentos a que, em casos extremos, só a morte põe termo). O exílio é, mais do que um estado, uma condição, um ponto de chegada numa longa caminhada que poderá não sê-lo apenas ou tão-só num sentido geográfico (o exílio pátrio é apenas uma das modalidades exílicas) mas sê-lo-á sempre num sentido psicológico, emocional e espiritual. Como é sabido, há exilados que nunca saíram da sua pátria, sendo o exílio interior, ou assim considerado por Paul Ilie (veja-se I lie, 1980) um exemplo bem conhecido. O exilado já passou por aprendizagens, geralmente negativas, até chegar aqui e este aqui é geralmente espaço (geográfico mas também, talvez acima de tudo, psicológico e afectivo) de habitação mais ou menos permanente. Claro que a junção da temática mais socialmente emigrante e da temática mais existencialmente exílica pode dar-se no mesmo ser humano e no mesmo texto (aliás, o estado patológico que dá pelo nome de choque cultural costuma verificar-se, quando se verifica, tanto no caso do emigrante assalariado como do mais intelectualizado exilado).

Quanto à representação literária da migração propriamente dita na literatura portuguesa em geral e na açoriana em particular, não conheço algum trabalho teórico ou teórico-crítico que a aborde. Isto apesar do interesse de que se reveste, não só no poeta que aqui nos interessa, mas, para dar apenas alguns exemplos aleatórios, em Vitorino Nemésio (O Bicho Harmonioso, Eu, Comovido a Oeste, Mau Tempo no Canal) e João de Melo (Gente Feliz com Lágrimas), escritores e obras esses em que a temática da migração (e exílio), se bem que em graus distintos, co-existe com a da emigração. Embora a poesia de Pedro a Silveira seja, toda ela, partidária da poesia social e antropológica – por se preocupar, num sentido geral, com a problemática sócio-política-económica dos Açores e com o destino do povo açoriano e com a sua identidade cultural e linguística – não há que negar que a poesia testemunhadora da emigração de assalariados tende, necessariamente, mais para um drama social, como já se indicou, e que a temática da migração e exílio focada no presente trabalho esteja mais próxima dum drama pessoal, sem que eu lhe esteja a negar certo carácter representativo para muitos açorianos que optaram, ou tiveram, por razões económicas ou outras, que se ausentar do arquipélago pátrio para residir algures no Continente. Devo frisar, porém, que para mim um dos valores máximos da poesia de Pedro da Silveira é que ela, até mesmo nas suas manifestações mais pessoalistas, não deixa de ser, latu sensu, uma poesia socialmente empenhada.

A partida

A série de poemas sobre a partida na poesia de Pedro da Silveira compreende dois textos inéditos, «Saudade» e «Cantar de Amigo», hoje incluídos na secção Primeira Voz, de Fui ao Mar Buscar Laranjas. «Saudade», cronologicamente o primeiro poema silveiriano de partida, é datado de Lisboa, 19-III-1944, portanto do local de acolhimento e “desterro” da poesia de Pedro da Silveira, mas 8 anos antes da sua fixação definitiva na capital portuguesa, o que vem a ocorrer em 1951. O segundo poema nessa série de inéditos é datado de Ponta Delgada, 8-III-1945, e é o número 4 da pequena série intitulada «Quatro dos Poemetos de Chá de Margaça» (sendo a parte italicizada deste título jocoso originalmente título de livro de Pedro da Silveira que não chegou a ser editado). «Saudade» (Primeira Voz, Laranjas: 25-26) é um poema de partida dada em retrospectiva e investida de certa sentimentalidade. O mobiliário regional aqui está: os garajaus, os seus pios (leitmotiven da açorianidade, esta e outras aves de nome açoriano, na poesia de Pedro da Silveira). Uma despedida no cais. Uma jovem de lenço a acenar. Cena um tanto romântica, melancólica. O vapor a largar o cais, a sensação da terra a fugir, como se alguém lha roubasse, em vez de ser o navio a ausentar-se. O navio é outro signo da temática, da díade temática ilha-mar, presente em muitos poemas do Autor. Algumas imagens deste poema – pois no todo estes poemas de partida constituem uma série temática imagisticamente integrada – repercutir-se-ão em outros textos subordinados ao temário da partida. «Cantar de Amigo» (Laranjas: 37-38): a partida, neste caso, projectada para o futuro. Glosas dos dois primeiros versos “Quando me eu for daqui / quem se lembrará de mim?” (Laranjas: 37). A cor local açorianizante está dada nos versos “os canários fritos / e o sumo da uva” (Laranjas: 38). O poema «Improviso Aéreo (A bordo de um ‘Dakota’, rumo à ilha de Santa Maria» (Sinais de Oeste, Laranjas: 123-124) foca uma partida, mas não uma partida (ostensivamente) para fora do arquipélago. Não há, portanto, sensação de drama de quem abandona a pátria açoriana. Este poema serve, portanto, para aferir a dramaticidade da partida para fora, em oposição a partida para dentro ou não para fora do arquipélago. A paisagem é das ilhas, identitária: as pedras do mar vistas do avião; os milharais; a forma dos cerrados; os incensos.

E chegamos a uma das séries mais significativas não só no que respeita à temática da partida, mas da expressão da açorianidade (1) na poesia de Pedro da Silveira: «Diário de Bordo» (Sinais de Oeste, Laranjas: 161-179) – uma série de 21 poemas, documentando a sua viagem, de Março a Abril de 1951, como consta da datação do poema, da ilha das Flores ao Continente português onde Pedro da Silveira ia estabelecer residência. É significativo, para a temática migratória (e seus paralelos, já apontados, com a experiência emigratória do povo açoriano) o facto de esta série poemática ser dedicada a dois amigos do Poeta, ambos açorianos e emigrantes: Alberto Machado da Rosa e Eduardo Vasconcelos Moniz, o primeiro ausente em Madison, Wisconsin, e o segundo, no Rio Grande do Sul, Brasil. A dedicatória leva a legenda, também significativa, “– companheiros ausentes / amigos sempre presentes na lembrança do que não pôde continuar a viagem”. A migração é, assim, dada como uma (involuntária?) impossibilidade de continuação de viagem que teria, supõe-se, descambado numa emigração, o que não obvia, claro está, a que essa migração seja encarada, poeticamente, como uma emigração. «Diário de Bordo» é formalmente dos documentos poéticos mais originais de Pedro da Silveira, mediando entre a regularidade métrica e a liberdade estrófica, passando pelo poema em prosa e pelo texto poemático em cena dramática dialogada, a dimensão conteudística deste poema-em-21-textos é a mais significativa representação, na poesia silveiriana, da componente da partida no total da experiência migratória na poesia do Autor. Mas constitui também um esboço de poética de alcance mais abrangente no que diz respeito ao compromisso, da parte do Poeta, para com a açorianidade, relevando-se desse compromisso a temática identitária, primeiro com a ilha de origem em relação às outras ilhas dos Açores e, em segundo lugar, com respeito aos Açores versus a metrópole. O poema-em-poemas que agora nos ocupa constitui um Diário que vai acompanhando as escalas do barco de ilha em ilha (todas as ilhas do Grupo Central, as duas do Grupo Oriental, depois seguindo para o arquipélago da Madeira, com escala na ilha da Madeira e em Porto Santo) e finalmente rumo à terra do destino e do desterro – a capital portuguesa. À medida que prossegue a viagem do navio ao longo dos vários canais e nos seus meandros de porto em porto, o poeta sobrepõem-lhe outras três viagens: a primeira viagem de reminiscências pessoais associadas com a sua estadia (Angra) ou passagem anterior por aquelas paragens (Faial, Pico, S. Jorge, Graciosa, São Miguel, Santa Maria). Só Angra se aproxima, em termos afectivos, da patria chica que, no entanto, ocupa, e continuará a ocupar no corpus poético silveiriano, um lugar único de singularidade afectiva. «(Angra revisitada)» reza, em parte:

De cada vez que volto
não volto: re-vivo,
tenho doze anos,
Maravilhado, recresço.

Angra:
foste a segunda pátria
onde botei raíz,
o meu primeiro
(adolescente)
País de Encantamento (Laranjas: 171).

A segunda viagem, dada contrapontisticamente com as outras duas, é a viagem de registos que vão salientando a singularidade histórica, étnica e literária do arquipélago açoriano (relativamente à Horta, os Dabney; a S. Jorge, “Nesta ilha, sobre a ponta extrema / onde o sol acorda, / habitou Willem van der Haaghe”, Laranjas: 169; em Ponta Delgada, S. Miguel, cumpre o poeta a obrigação de evocar “a âncora de pedra, / onde Antero se matou”, Laranjas: 172). De igual importância para o drama ensaiado neste poema-de-21-textos, e retomado em outros poemas ao longo do corpus inteiro, é a terceira viagem, uma viagem sentimental e identitária que representa este percurso entre a «Pedra da Vida» – nome poético-afectivo para a ilha das Flores (poema 1) –, a passagem pelas outras ilhas, incluindo a Madeira, e a chegada à terra do desterro. A este nível da viagem estão associados vários registos de patente açorianidade – com particular relevo para a violenta geologia, a acidentada topografia, o paisagismo deslumbrante de terra e mar, a flora e a fauna, a gastronomia, os regionalismos linguísticos que, mais tarde, nos textos 20 e 21 do Diário, são brutalmente contrastados com uma imagética marcadamente disfórica, tendo sido estes mesmos textos 20 e 21 antecipados por duas experiências particularmente negativas para o sujeito poético: o protesto gastronómico, do texto 15 do mesmo nome, em que se contrasta os açorianos “‘lapas d’afonço’ / vinho de cheiro / e pão de milho” (Laranjas: 173) com “esta comida à francesa / e este pão que sabe a giz!” (Laranjas: 173), emblematizando-se, assim, mediante imagética gastronómica, a aproximação da terra do desterro. A segunda experiência negativa e antecipatória da imagética disfórica dos textos 20 e 21 é o diálogo (texto 19) entre duas turistas continentais regressadas das ilhas que emitem opiniões esteriotipadamente metropolitanas em relação aos açorianos que o sujeito poético, outrando-se na figura do “Passageiro Insulano”, uma das personagens do diálogo mas que só intervém perante o leitor, escuta sem ser notado e às quais faz comentários que patenteiam, em palavras e desejos de violência, toda a sua mágoa e fúria de ilhéu atingido no seu orgulho e integridade identitária. O poema 20 é uma aproximação de terra (o Continente), disforizado em assinaláveis contrastes (o “azul” do mar dos Açores com a “cor-de-cinza” que se aproxima; os “garajaus” e “passaroucos” dos Açores versus “as aves” que, conquanto sejam “bons sinais / de terra perto”, surgem, significativamente, apenas com nome genérico: cf. as aves de nome particularizado do texto 7, em pleno mar dos Açores: “Garajau? / Passarouco? / – Sabe nadar.” [Laranjas: 169]). Eis o texto 20, penúltimo da série, intitulado «(Último amanhecer no mar)» (Laranjas: 179), que reza assim:

É cor-de-cinza o céu.
Triste Abril português
Mascarado de inverno
No oceano verdoso.

Aves, oh bons sinais
De terra perto,
Desenhai-vos no vento!

Tudo se veste
de ausência.

O último poema do Diário, o número 21, não deixa qualquer lugar a dúvidas de que o sujeito poético se aproxima da terra do desterro: na imagética contrastante da cor do mar dos Açores e Continente (o azul vs. o verde); o barro que, na ilha de Santa Maria, se aproximara da sacralização (“Era de barro e cal a tua história / e inviolada, virgem, te guardava / o mar nas suas águas sem memória” [texto 14, Laranjas: 173]), agora, no poema 21, metaforiza um país e um destino (o dos Descobrimentos) a que o sujeito poético parece permanecer friamente indiferente; e, finalmente, a imagem dum lenço a acenar no cais e que, ao contrário da sua contrapartida, no poema «Saudade», anteriormente comentado, agora metaforiza um cais afectivamente vazio: o cais da chegada do (e)migrante que partiu só e chega só – o cais da solidão. Eis o texto 21, intitulado «(Duas da tarde: Lisboa à vista)», com que se conclui «Diário de Bordo»:

Primeiro, a água era azul:
puro espelho celeste.
Depois, tornou-se verde:
Opaco verde de desgosto.

Agora é barro dissolvido:
Terra
de Portugal que o Tejo incita
a descobrir as Índias
e Américas ainda
por encanto encobertas.
– De quem o lenço que acena,
acolá,
do cais? (Laranjas: 179).

Dessa chegada disfórica à metrópole do desterro, o Poeta ilhéu guarda a promessa a si mesmo – que a sua poesia vai cumprir e que fora expressa no texto 1 do Diário: uma promessa de “regresso a tempo certo” e de identitária fidelidade – fidelidade essa que, no degredo, constituirá, em parte, o combustível do drama a viver:

Abandono-te, Pedra!
E no entanto é aqui,
com nuvens sobre os ombros
e encovado no vento
e nas vagas do cerco;
é aqui,
aqui somente que os meus pés
sabem que assentam e caminham
na terra do seu molde.
(O resto, amor
ou desamor,
é passagem.) (Laranjas: 163).

Outra evocação de uma das partidas da terra do exílio insular e de uma das chegadas à terra do exílio extra-insular, o poema «Memento», de Sinais de Oeste, constitui uma ars poetica, a (re)encenação de um dos momentos mais dramáticos da poesia de Pedro da Silveira: a partida da ilha que fora de exílio e que doravante constituirá a terra prometida; e a chegada à terra que será de exílio porque a outra, a deixada/prometida, simplesmente passará a existir como objecto de desejo. Entre esses dois extremos – a perda e a resultante busca da ilha perdida, por um lado, e a alienação da condição presente na terra do desterro – se move, tematicamente, grande parte do corpus poético de Pedro da Silveira, facto de que este poema é a autoconsciente confirmação. Ao evocar a ilha, o sujeito poético nem deixa de subtilmente acusar a presença de Roberto de Mesquita, no adjectivo cativos, e na também mesquitiana imagética da prisão, a que mais adiante regressaremos:

A ilha, no fundo, como pedra limosa
para os peixes cativos num aquário.
(Laranjas: 189).

Numa evocação de repetidas travessias, das quais o poema 1 de «Diário de Bordo» seria o exemplo máximo, o poeta regista novamente a chegada à terra do desterro, recorrendo à imagética topográfica e paisagística para sublinhar a sua alienação. É curioso também – e significativo – que uma das imagens a que recorre Pedro da Silveira seja, precisamente, a imagem identitária do desenraizamento, imagem essa que, com base no célebre livro de Oscar Handlin, The Uprooted (1951), foi das metáforas mais usadas na América, durante décadas, para metaforizar a experiência e condição do imigrante:

Lento cortando o mar um paquete me trouxe
como sem vontade de afastar-se.
No estuário de um rio, deixando-me, plantou-me.
Mas a terra, estranho-a: é seca,
Não enseiva (são d’outra!) estas minhas raízes.
(Laranjas: 190).

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(1) Não me vou alargar sobre o conceito de açorianidade, aliás bem conhecido. Uso o termo na acepção de voluntariosa identidade da parte do Autor com as ilhas açorianas, seu povo e sua cultura, no que eles têm de singular em relação às outras regiões de Portugal.

O retorno

São vários os poemas de retorno na poesia de Pedro da Silveira, sendo o primeiro, na sequência cronológica da sua poesia, o número 1 da secção «Quatro Poemas da Antemanhã», do volume A Ilha e o Mundo, ao qual dediquei alguns comentários no ensaio referido no início do presente trabalho (Fagundes, 2003). O poema tem como um dos seus textos palimpsésticos a «Ode Marítima» de Álvaro de Campos. Trata-se, no contexto da temática da migração e exílio em geral, e da fase de retorno em particular, dum texto extremamente significativo. O poema número 1 não tem data, mas integra-se num volume editado em 1953. É, portanto, lícito pensar que se trata dum poema sobre o primeiro regresso do poeta à sua terra – regresso imaginário, claro –, depois da sua fixação em Lisboa cerca de dois anos antes. As semelhanças mais óbvias com a «Ode Marítima» são a situação do sujeito poético silveiriano num café de Lisboa (num cais de Lisboa, na «Ode Marítima») e o uso do “paquete” (tanto no poema de Pedro da Silveira como no de Pessoa) como veículo imaginário para a viagem a encetar:

Aqui,
longe,
num café de Lisboa,
quase à beira do Tejo turvo das fragatas,
a olhar um paquete que vai na direcção da barra,
subitamente é como se eu também partisse.

E só de pensar-me partindo
embarco e, deslumbrado,
imagino-me chegado às ilhas. (Laranjas: 87).

No fim do poema – esgotada a viagem imaginária e depois da noção de “realidade” ser novamente restabelecida – o ser silveiriano, tal como o pessoano, regressa ao momento de partida. Álvaro de Campos está novamente sozinho no cais de Lisboa. O ser silveiriano, presumivelmente sentado à sua mesa de café, confessa a sua distância da pátria açoriana a que voltara apenas na imaginação e na saudade.

O recurso palimpséstico à «Ode Marítima» é utilizado para acentuar as marcantes diferenças entre os dois poetas no que concerne a respectiva viagem empreendida por eles, a sua orientação ideológico-temática, inclusive as radicais diferenças, nos dois textos, no que a algumas das suas respectivas evocações intertextuais diz respeito. Álvaro de Campos transita, imaginariamente, para e por épocas pretéritas e espaços e cenas que compreendem, entre outras, reminiscências de carácter metafísico, épocas associadas aos Decobrimentos portugueses, à literatura de aventuras marítimas de língua inglesa do séc. XIX (sendo Treasure Island, de Robert Louis Stenvenson, uma das obras mais ostensivamente evocadas), à própria infância de Fernando Pessoa. Quebrado o transe quase-místico que susteve o poeta pessoano pelo espaço de centenas de versos («Ode Marítima» contém mais de 900 versos) Álvaro de Campos, o exilado de outras épocas e outras personalidades, vê-se e revê-se novamente só no cais de Lisboa, o cais-de-ser-o-mesmo-com-vontade-de-ser-outro. Conquanto partilhe com o ser pessoano uma condição de exilado e nostálgico por outros espaços e tempos, o sujeito poético silveiriano, em oposição ao pessoano, não encetará, neste poema, uma viagem susceptível de quaisquer implicações metafísicas, decandentistas, escapistas ou anti-sociais (cf. as batalhas navais e as conhecidas cenas violentíssimas, inspiradas, em parte, nas aventuras dos piratas stevensonianos mas ultrapassando-as de todo na sua ostensiva expressividade homoerótica). A silveiriana é uma viagem hu manista de regresso imaginário à terra de origem, uma viagem de afirmação identitária, a expressão duma poesia partidária da poesia social, uma expressão ideologicamente solidária com os povos das então colónias africanas, sendo, neste particular, o uso recorrente de «Mãe Terra» o elo mais ostensivo desse parentesco. Para quem conheça não só a poesia do autor de A Ilha e o Mundo, mas ainda pensamentos seus emitidos extrapoeticamente, esta aproximação da experiência açoriana e africana não deve constituir nenhuma surpresa (cf. Silveira, 1977: 1-4).

Outro paralelo estrutural, com marcante diferença de conteúdo temático, com a «Ode Marítima» são os momenos ou sequências por que os dois sujeitos poéticos vão passando no percurso parabólico que traçam desde o café (cais, em Álvaro de Campos), depois pelas várias sequências de locais por onde a imaginação os transporta, até regressarem, por fim, ao ponto de partida. As sequências que enformam o poema de Pedro da Silveira são, até mesmo na sua ordem e distribuição através do poema, tematicamente expressivas. A primeira sequência (coincidente com a segunda das dez estrofes deste poema de 50 versos) evoca o “mundo familiar” do arquipélago como se ele estivesse a ser visto do ar. Neste particular, o poema 1 de «Quatro Poemas da Antemanhã» não deixa de estabelecer uma relação intertextual com o poema, referido e comentado em relação com a série de poemas de partida, «Improviso Aéreo». As imagens com que, nesta primeira sequência da viagem, os Açores são evocados são imagens duma perspectiva não só aérea mas genérica; mas que, aos poucos, se vão convertendo em imagens de progressiva proximidade, numa sugestão visual de câmara cinematográfica que lentamente se acercasse; e, num plano sensorial, da substituição, progressiva também, das sensações perceptíveis ao sentido da visão pelas imagens, denotando planos cada vez mais próximos, enformadas por sensações olfactivas e auditivas:

E vejo-te, Mãe Terra; és tu,
de nuvens e de aves marítimas coroada,
no meio desse Atlântico – bravio
abraço de águas salgadas que nos atira
para o mundo,
nos separa do mundo. Sinto
o cheiro saboroso do teu chão de lavas verdes;
ouço mesmo o rumor surdo das ribeiras
caindo das rochas abaixo
(ou será talvez o mar batendo nos baixios
da costa?)...

O segundo momento ou sequência de poema 1 é uma evocação, reflectindo uma vista já de terra, das cidades do arquipélago e das “vilas mortas” e de pois, “mais sobre oeste, / tanto que ali a Europa acaba, / [a] freguesia onde eu nasci” (Laranjas: 88), nota bairrista, em oposição a pan-açorianista, a que mais tarde voltaremos. No terceiro e quarto momentos ou sequências coincidentes com a quinta e sexta estrofes do poema é desferida a nota paisagística denotante da beleza das ilhas (as hortênsias) e conotante do atraso económico e do esforço humano pela sobrevivência (a rapariga com um molho de lenha à cabeça; um menino levando vacas para a relva). Como que a compensar a nota bairrista de particularização do torrão florentino, o sujeito poético, na quinta estrofe, levado pelo veículo da imaginação e da memória, percorre “todos / os lugares de cada uma das nove ilhas”, o que lhe permite tornar possível o impossível: a recuperação do tempo perdido, momentaneamente conseguindo-se, mediante um esforço da memória criativa a la Proust, agora com semelhanças com os «Lisbon Revisited» e, inclusivamente, «Aniversário», de Álvaro de Campos, rever e reaver a família perdida. Note-se, porém, que, ao contrário do Campos do «Aniversário», a família que evoca o sujeito poético silveiriano não é a família nuclear mas a família fraternal, diaspórica, acentuando-se assim o carácter social, histórico e colectivamente identitário do poema 1 de «Quatro Poemas da Antemanhã»:

Os meus antigos companheiros,
tantos deles por aí dispersos,
outros, como eu, perdidos ao longe
– na Europa, em África, nas Américas –,
estão agora todos presentes. Penso
que alguma cousa diferente vai passar-se,
algum acontecimento extraordinário.
(Laranjas: 88).

Antes, porém, desse “acontecimento extraordinário” ter lugar, o poeta sofre o rompimento desse elo de magia que lhe permitiu a viagem no espaço e no tempo – e a realidade da sua condição de ausente e nostálgico exilado impõe-se-lhe e traduz-se-lhe numa imagem prenhe de sugestividade e ambiguidade: “um muro hostil de braços estendidos cor de azebre”, impeditivo da concretização real do que permanecerá uma visão de sonho que permitiu a momentânea viagem espácio-temporal encetada no poema 1 e que teria sido, poeticamente, mais viável se as barreiras que separam o desejo e a concretização da viagem tivessem permanecido mais subtis e sugestivas em vez de descambarem no voluntarioso artificialismo imposto pelo “embarco e, deslumbrado, / imagino-me chegado às ilhas”, da segunda estrofe, e pelos versos “é só de imaginar-te que te vejo. / É só saudade a tua presença em mim”, da sétima estrofe. Como poema de regresso, este primeiro texto de «Quatro Poemas da Antemanhã» funciona ainda, veremos mais tarde, como introdução de temas e situações dramáticas associadas com os vários poemas de retorno no corpus silveiriano mas que serão tratados, como seria de esperar, de maneira diferente e com graus de êxito também distintos. Sinais de Oeste (1962) é um título que não pode deixar de evocar o nemesiano Eu, Comovido a Oeste (1940), o qual, juntamente com os também nemesianos O Bicho Harmonioso (1938) e Festa Redonda (1950), para mencionar apenas trabalhos poéticos, traduzem aquilo que Pedro da Silveira extrapoeticamente denominou “o selo da modernidade e [...] sinal de descoberta, em qualquer sentido, da realidade geográfica e humana das Ilhas.” (Silveira, 1977: 32). Muito significativamente, Sinais de Oeste é encabeçado por duas epígrafes relacionadas com a temática geral em foco neste trabalho e com o tema do retorno em particular. A primeira epígrafe consiste de dois versos extraídos de Parva Naturalia, de José Blanc de Portugal (“Pássaro triste das ilhas derradeiras / a terra velha ainda te sorri”); a segunda é tirada de Do Sono e da Esfinge, de Afonso Félix de Sousa. Apesar de ser um texto longo, a sua relação íntima com a temática deste ensaio justifica a sua citação na íntegra:

Agora voltas – de onde? Agora sabes que é
preciso silêncio
para que mais te
sintas o exilado. Praia espessa do espanto.
Ilhas, ó ilhas longes, impalpáveis!
Quereis corrê-lo, o verde país de ontem, onde
a criança que foste ainda brinca.
E é tarde para o retorno. Força é acordares no
estrangeiro que, pálido, acorda no
teu íntimo. (Apud, Laranjas: 97).

É de notar que a primeira secção da colectânea Sinais de Oeste é intitulada «Arte Poética» e que consiste de um só poema do mesmo nome, no qual se contrasta o desejo, da parte do sujeito poético, de ilhas (“O meu desejo abarca as ilhas todas do Mar”, Laranjas: 101) com o fastio dos continentes – denominados pelo sujeito poético “desertos povoados!” (Laranjas: 101). A secção que se segue a «Arte Poética», intitulada «Pouco Mais que Paisagem», é por sua vez epigrafada por um breve texto extraído de O Vigia de Baleias, de José de Bellegarde, que reza assim: “Minha vida é olhar, olhar!...” (Laranjas: 103). O poema «Volto. Até quando?...» que compreende o primeiro dessa secção «Pouco Mais que Paisagem», é também, porquanto eu saiba, o primeiro poema de retorno de Pedro da Silveira, pelo menos na ordem em que os poemas estão dispostos na colectânea (este, como tantos outros poemas do Autor, não tem data). Condicionado pelos textos, incluindo os epigráficos, que o precedem, o poema constitui uma das expressões mais subtis de expressão de retorno migra tório/exílico. Três ideias principais o regem: a permanência do mar e das cores da paisagem vis-à-vis a não explícita mas pressentida transitoriedade de tudo mais que ganha não pouca expressividade por ser calada; a sensação, não original na sua essência, mas atingindo não pouca dramaticidade e novidade na compressão possibilitada pela catadupa de gerúndios e pela reiteração dos advérbios “aqui” e “longe” e pelas imagens quinestésicas denotativas e conotativas da permanente viagem, da condição da judeu-errância, do retornado, recuperando-se neste poema, como se recuperam, reminiscências de carácter autobiográfico que, no entanto, são transcendidas pela distância lírica atingida neste texto e que, como vimos, faltava ao poema 1 de «Quatro Poemas de Antemanhã»:

Desde menino vagabundo,
desde menino indo e tornando...
Longe,
aqui me desejando;
aqui,
longe e mais longe
o pensamento navegando.

A indeterminação das “vagas” da quarta estrofe – vagas do mar? Vagas do mar dos pensamentos e dos desejos do migrante/exilado? – preparam o terreno para o desfecho, compensadoramente enigmático também, como pede esta perolazinha lírica, “Querer ficar e nem poder pensá-lo!...” (Laranjas: 105). Não poder pensá-lo por incapacidade de realizá-lo? Não poder pensá-lo porque as vagas do mar dos pensamentos se sobrepõem e se cancelam umas às outras num turbilhão emotivo de desejos contraditórios que definem, sem a definir, a condição do migrante/exilado, do retornado à sua terra que já não é? À realização dum desejo que outro, contrário a esse, já cancelou? Dessa, e doutras subtilezas, se alimenta e vive «Volto. Até quando?...» A subtileza que enforma o poema «Volto. Até quando?...» é totalmente posta de parte num dos mais ostensivos e dramáticos poemas de retorno do corpus silveiriano: «Os Ritos (Segundo Nicanor Parra)», poema integrado na colectânea Poemas Ausentes, título plurissignificativo, sobretudo no contexto duma discussão de poemas de retorno. Poemas ausentes de outras colectâcteas? Poemas sobre a temática da ausência? Ambas as coisas? Os “ritos” titulares, enumerados num discurso mantido ao longo dos 47 versos essencialmente despidos de tropos deste poema dividido em 7 estrofes, alimentam-se, em parte, da intertextualidade com outros momentos expressos nos poemas já discutidos nesta secção dedicada ao regresso. Na realidade, este poema – que constitui a evocação de experiência repetidas em cada regresso de verdade e não apenas de deva neio, como é o caso do poema 1 de «Quatro Poemas da Antemanhã» – pode ser lido como uma antítese do poema 1. Lembramo-nos que esse poema, concebido como uma visão de sonho, traduz, enquanto dura o devaneio, na realização dum desejo de recuperação de momentos pretéritos: um mundo que ressurge; uns campos que nitidamente se vêem; antigos companheiros que estão agora todos presentes. O poema «Ritos», pelo contrário, consiste, em primeiro lugar, não dum mero retorno dum migrado ou exilado, mas sim dum retorno “depois duma grande ausência”. Essa grande ausência traduz-se, primeiro e como seria de esperar, na constatação de mortes (de familiares e conhecidos) e de ausências (de amigos e conhecidos levados pela (e)migração). Em segundo lugar – e eis a sua parte mais dramática – o poema encena uma série de ritos ou papéis, associados com momentos pretéritos, incluindo a infância, e presentes que exigem um desdobrar ontológico, da parte do sujeito poético, em vários entes – incluindo a própria mãe – e papéis que pertenceram e teriam sido assumidos por outras entidades agora mortas e ausentes. É mediante este teatro patético de mortos-vivos e vivos-mortos que o retornado, depois de criar um palco reminiscente duma tumba, encena uma recuperação do tempo perdido narrando-se estórias e cantando-se canções a si mesmo, tornando-se actor e espectador da sua própria solidão de exilado. Note-se que, apesar duma dramatização patética da solidão que tão frequentemente preside aos retornos ao vazio da condição (e)migrante e exílica – este poema também acentua os extremos de recursos a que tem acesso aquele que alguma vez passou pela aprendizagem de (e)migrante e exilado: a de tornar-se a sua própria família. Tantas vezes poetizada e ficcionalizada, raras vezes esta fase da emigração exílio terá atingido um grau de expressividade tão veemente, à qual nem falta um grau de ironia – e auto-ironia, como enfatiza a referência, onomasticamente transcendente, a Pedro Malas-Artes (sublinhado meu):

E assim abro a porta de minha casa,
entro e fecho-a à chave atrás de mim
como quem se defende dos ladrões nocturnos,
cerro as cortinas todas, encosto
as portadas de madeira das janelas
e sento-me na cadeira-de-embalar,
a mesma que meu avô trouxe de Boston
quando voltou de vez e se casou.

Fecho então os olhos (para ver melhor)
e a mim mesmo conto contos que ainda sei,
os de Pedro Malas-Artes primeiro
e em seguida quantos mais me vão lembrando
como aqueles, de subtilezas e enganos.
E com isto pouco a pouco adormeço
e quando acordo, descansado
e achando natural estar de novo onde estou,
ponho-me a cantar todas as canções
levianas e até obscenas
que anos a fio aprendi por esse mundo.
(Poemas Ausentes: 17).

Na secção, significativamente intitulada «Passos do Desterro», de Sinais de Oeste, deparamo-nos com um poema breve reveladoramente intitulado «O Mar, Sempre», epigrafado pela afirmação extraída de Atlante, de João Gouveia, afirmação essa de longo alcance na poesia profundamente insulada de Pedro da Silveira: «Eu sou do mar»:

Água: mar: lonjura...
Sangue e força
da vida!
Meu caminho às avessas,
Desaguado na terra.

Não reneguei.
Hei-de tornar! (Laranjas: 198).

Para além de apontar para uma das constantes da poesia silveiriana, este breve poema prenuncia outro poema desta mesma secção «Passos do Desterro», que vem quase concluir a colectânea Sinais de Oeste, sendo, como é, o penúltimo dos seus poemas: «Última Vontade» (Laranjas: 208-209). Poema tecido de sentimentos exílicos é, na sua riqueza intertextual, não excluindo a homo-autoral, também uma homenagem aos dois maiores poetas açorianos de sempre. Antero de Quental e Vitorino Nemésio. De Antero, «Última Vontade» ecoa o soneto «Sepultura romântica», sobretudo o seu último terceto: “Com suas lutas, seu cansado anseio, / Seu louco amor, dissolva-se no seio / Desse infecundo, desse amargo mar!” (Antologia: 153), soneto esse que, sem surpresa, Pedro da Silveira inclui na sua Antologia de Poesia Açoriana. Ecos, também, do «Desabafo», de Nemésio – “Terei vestido e pão no mar e nos seus fundos / E nos peixes de cor as flâmulas de guerra” (Antologia: 250). Para além destes ecos de exilados, cada qual a seu modo, da pátria açoriana, o poema «Última Vontade» reporta-se, completando-os, a outros poemas do Autor, nomeadamente ao poema «Ritos», de que seria uma continuação-conclusão, como seria ainda, sem deixar de ser todas essas outras coisas, como que a súmula do itinerário humano, poético e exílico silveiriano – até porque, na poesia em epígrafe, que dir-se-ia viver do exílio de que é sósia, itinerário poético e exílico são quase uma e a mesma coisa. «Última Vontade» é, pois, a expressão do desejo de regresso definitivo à pátria definitiva que, para este poeta que se definiu como “Ilhéu / da casca até ao cerne” («Soneto da Identidade», Poemas Ausentes: 14), não poderia deixar de ser o mar, que o sujeito poético associa com a infância (“Trago do berço esta canção de embalo, / e já nem distingo se é do mar”); com a figura materna que, no poema «Ritos», o próprio sujeito poético assumiu nos vazios do exílio, e das figuras paternas que, neste arrecadar de memórias da família, integram o drama diaspórico de que o sujeito poético é o continuador (“Mar! [...] canta e adormece-me, / conta-me histórias de meu avô baleeiro, / quando uma barca o levou, ainda menino, / até um porto da outra margem do Mundo”. «Última Vontade» é ainda, para além dum repositório de memórias exílicas e um auto-retrato de exilado, uma expressão conseguida do anelo da arquetípica Ilha do Descanso.

Exílio insular e extra-insular

Seria ocioso discorrer sobre os conhecidos poemas do grande simbolista açoriano Roberto de Mesquita reportados ao exílio interno, em oposição ao exílio externo, condicionado este por uma ausência do arquipélago materno que, um dia, talvez seja experimentado por essas “almas [que vão] para o exílio” do soneto «Tarde Enferma»:

Vão almas para o exílio, e lenços a acenar
Neste ocaso outonal, doente a langoroso
(Mesquita, 1973: 34).

O exílio mesquitiano reveste, com muitas e subtis variações de permeio, dois tipos principais: por um lado, uma sensação de exilado (como a que enforma o soneto «Ancestral»; Almas Cativas e Poemas Dispersos: 73) camoneanamente neoplatonizante (“Pobre exilado que jamais hás-de voltar / À adorada Sião da tua extinta idade!”). Mais frequentemente na sua poesia, porém, deparamo-nos com uma sensação de mal-estar e irrequietos desejos evasionistas que, conquanto pudéssemos atribuir-lhes, a eles também, causas indefinidas trespassadas de sentimentos metafísicos e até cristãos, estão, a nível metafórico relacionados com a insularidade (magistralmente estudada por Nemésio) e o clima tristonho, com particular relevo para as paisagens outonais e invernais. O soneto «Às Grades da Prisão» (Almas Cativas e Poemas Dispersos: 117) representa uma modalidade desse desejo de evasão. Traduzido para poesia social e aliada à experiência dum enorme sector da população das Ilhas, esse evasionismo vai transformar-se, em A Ilha e o Mundo de Pedro da Silveira, no célebre “barco na distância: / olhos de fome a adivinhar-lhe à proa / Califórnias perdidas de abundância” (Laranjas: 53). A Pedro da Silveira, avesso a metafísicas, nada lhe interessa o exílio neoplatonizante. Não assim o exílio que provém do isolamento ilhéu. É este o tipo de exílio que Silveira evoca, por exemplo, neste excerto do poema «À memória de Roberto de Mesquita», de Sinais de Oeste:

Era uma tarde aguada
e parda de Dezembro;
uma tarde que tu,
se comigo a habitasses
certamente cantavas
trespassada de exílio . (Laranjas: 127).

No poema «Nocturno», também de Sinais de Oeste, a sensação de exílio – sentido pelo próprio poeta mas extensivo à colectividade dos habitantes da ilha – ganha fortes ressaibos de protesto social. O poema, sem data, reporta-se, em parte, a uma guerra que chega ao sujeito poético em notícias da rádio. O contraste entre a guerra do mundo dos vivos, com a paz podre do mundo ilhéu dos mortos (por implicação), constituiu um dos grandes achados da poesia social de Pedro da Silveira e marca, relativamente à poesia de exílio interno de Roberto de Mesquita, da qual se aproxima e se distancia, ou melhor, da qual se aproxima para se distanciar, toda a distância ideológico-temática que se esperaria ver surgir entre um poeta de filiação simbolista e um poeta de orientação neo-realista:

As ruas são
iluminadas a lua
e pontas de cigarros.

Das casas,
com janelas cegas,
escorrem silêncios de cal.

Na praça, de pasmo
as vozes apagam-se
na copa dos plátanos.
Audível, somente
a fala metálica,
fria,
da rádio contando
notícias de mortes
nas guerras
(distantes)
do mundo dos vivos. (Laranjas: 129).

Esse mesmo, ou semelhante, pasmo – “como passos de repente sustidos, / do silêncio suspenso” (Laranjas: 131), duas poderosas imagens no contexto duma época castrante de liberdades para o país –, converte o próprio desejo de evasão, que se esperaria surgir duma imobilizante teia de sentimentos que o poema evoca, numa vaga, indecisa e inactiva espera: “Noite? Amanhã? Amor?… / Espero” (Laranjas: 131).

Verifique-se que os vários poemas de Pedro da Silveira enquadráveis na série do que aqui denominamos exílio insular constituem uma extensa metáfora para a expressão subtil dum desespero repassado de implicações discretamente protestárias que, no entanto, permanecem aquém da denúnica panfletária. Por isso mesmo, perpassa este exílio insular silveiriano uma maior amargura do que enforma a sua poesia de exílio externo, ao contrário do que poderia parecer ou esperar-se. Para o exílio externo, como veremos, há uma saída – que é a própria esperança, a concretizar ou não, no regresso à ilha idealizada, na procura da ilha, no contraste entre a ilha e o hic et nunc em que o sujeito poético está imerso. Da prisão que a poesia silveiriana de exílio insular tece não há escape, a não ser a fuga para outra ilha em frente, que nada remedeia, pois nela as mesmas sensações de impossibilidade de escape se repetiriam. É o que se pressente no poema «Outonal (II)», de paisagem bucólica enganadoramente utópica, pois “os muros floridos” por entre os quais caminha, não deixam de ser, apesar de floridos, muros. Que evasão, para onde?

… Outra ilha, ao longe,
azul e névoa.
Vaga saudade
o desejá-la:
a vela que a demanda.

O próprio poeta parece reconfirmar, no poema «Moto-Contínuo», que imediatamente se segue a «Outonal (II)», o que acabamos de afirmar relativamente à por vezes (auto)enganadora exaltação paisagística:

A cada hora invento a cor e o hábito
de ignoradas paisagens.

A cada hora, inquieto, me interrogo:
o que terei depois?

E cada hora sempre me reduz
à certeza do havido. (Laranjas: 134).

O exílio extra-insular na poesia de Pedro da Silveira, isto é, aquele que é vivido na terra do desterro, continua a ser, de certo modo, insular, pois prende-se à ausência e à busca incessante da ilha que, por isso mesmo, se torna tão (ou mais) presente na ausência do que jamais fora na presença. É disso um dos exemplos máximos o soneto intitulado «Soneto sem Horizonte», o poema número dois da secção «Passos da Cruz», de Sinais de Oeste (Laranjas: 191). Trata-se dum poema – datado de Lisboa, 30-IV-1956 – em que estão dramatizados a temática exílico-identitária duma complexidade invulgar na poesia silveiriana, pois nela se sobrepõem um exílio duplo: o de um lugar e o de um tempo – “a tarde macilenta” e o “horizonte perdido em milhas de água”. Este soneto também constitui uma reflexão da parte do sujeito poético acerca da consciência dos limites do próprio escopo temático que enforma a poesia silveiriana, a qual, como já se indicou, revolve em grande parte em torno à migração e exílio e seus momentos dramáticos, como a partida, a chegada e a busca da ilha. A primeira quadra do soneto não pode deixar de despertar no leitor reminiscências da

«Canção de Exílio» de Gonçalves Dias:

Chove na morna tarde macilenta…
e eu aqui, neste café da beira-rio,
a imaginar ganhoas e o seu pio
numa outra tarde assim, cinzenta, lenta…

Admita-se, à partida, que o paralelo entre o pio da ganhoa e o canto do sabiá do poema de Gonçalves Dias poderá, para o leitor (des)prevenido, produzir uma sensação de absurdo, dado, como toda a gente sabe, a “ganhoa” (ou “garça”, ou “passarouco”, dependendo da ilha) ser um dos vários nomes para “gaivota”. Num café de Lisboa, com saudades de pios de gaivota!? Essa primeira impressão, presumindo que possa dar-se nalgum leitor, tenderá, porém, a diluir-se frente a dois factores, um de carácter psicolinguístico, o outro de carácter literariamente identitário de longa e rica tradição. Psicolinguisticamente, quem negaria a riqueza de associações afectivas que podem ser despertadas pelo sintagma “ganhoas e o seu pio”, sobretudo quando essa imagem vem ligada a outra, a duma “tarde assim, cinzenta, lenta…”, precisamente definidora de sensações açorianas experienciadas in locu e repetidamente evocadas na poesia silveiriana de próximo parentesco com as horas “morosas como lesmas”, do «Spleen» de Roberto de Mesquita (Almas Cativas e Poemas Dispersos: 70)? Como é sabido, porém, o termo ganhoa, conotado com a açorianidade nemesiana, integra (juntamente com garajau por gaivina) a lista de açorianismos aplicada por Pedro da Silveira na sua poesia e defendida por ele no Prefácio à Antologia de Poesia Açoriana, contra o “ensino ‘unicitário’ que Lisboa impõe aos Açores” (Silveira, 1977: 22).

Para este leitor, o soneto em epígrafe é ainda extremamente significativo pela afirmação – de longo alcance para uma avaliação da poesia silveiriana, sobretudo no que ao seu escopo temático diz respeito – feita no último terceto:

Ainda se fosse meu destino errar
De porto em porto – e só te relembrar
Como um desejo breve, ou breve mágoa...

Esta afirmação só cobra pleno sentido no contexto de um reconhecimento, da parte do Poeta, que a sua poesia tematicamente se move, obsessivamente, à volta da temática (e)migratória e exílica discutida neste ensaio e no ensaio que dediquei a A Ilha e o Mundo a que me referi anteriormente. O primeiro verso deste terceto lembra-nos o verso do célebre «Quase» de Mário de Sá-Carneiro, “Se ao menos eu permanecesse aquém...”, estando o “além” associado com a idealidade e o aquém com a realidade (cf. W oll, 1968). O desejo de errância na poesia de Pedro da Silveira está patente não só nos seus vários poemas de viagem ou de lugares – a alguns dos quais nos referiremos mais tarde e, como já indiquei, no próprio título dum dos seus livros, Corografias, mas está patente, ainda, na atracção do poeta pela obra e personalidade do vagamundo Blaise Cendrars que, em Sinais de Oeste, se torna uma presença assinalável. Não só lhe é reconhecida a presença mediante a epígrafe “... des hommes nouveaux en partant à l’aventure et en naviguant droit devant soi”, extraída do apropriadamente intitulado Bourlinguer, mas é-lhe dedicado um poema, no mesmo Sinais de Oeste, pessoanamente intitulado «Saudação a Blaise Cendrars», datado de Agosto de 1960. A sonhada aventura implícita nesse título – bourlinguer, como é sabido, significa “vagamundear, viver uma vida de aventuras” – permaneceu apenas um sonho na vida pessoal de Pedro da Silveira. Na sua vida literária, porém, terá sido em parte responsável, embora não seja fácil determinar até que ponto, pela sua poesia migratória, exílica e corográfica e quem sabe até pela obsessão que este poeta que nunca emigrou para um país estrangeiro, nunca foi perseguido politicamente e nunca fez mais do que umas quantas viagens ao estrangeiro tenha sentido uma atracção tão grande pelas temáticas em epígrafe.

Ocioso seria espraiarmo-nos na enumeração de poemas no corpus silveiriano dedicados, latu sensu, à busca da ilha fora da ilha. É um dos exemplos mais curiosos, dessa série de poemas de busca de ilha dispersos por Sinais de Oeste, Corografias e Poemas Ausentes, o poema «Vieram-me à lembrança umas velhas leituras... (fragmento recuperado)», de Sinais de Oeste, em que a ilha de Paulo e Virgínia, do romance de Bernardin de Saint-Pierre, emerge na memória do sujeito poético, mesclando-se com memórias (deixadas em manchas ao longo de muitos dos seus poemas...) da ilha das Flores:

Verde era a ilha, e sossegadamente
a vida nela demorava.
Novas da Europa, longe a longe
Vinham ronceiras pelo mar.
Um paraíso de melancolia
a ilha de França no Mar Índico!
(Laranjas: 112; o itálico é do Poeta).

Datado de 1985 e integrado no volume Corografias, o poema «A Vitorino Nemésio», parente de «Vieram-me à lembrança...», porquanto derive de memórias de leituras, supera de longe, como realização poética e pela importância palimpséstica que tem a obra de Nemésio no corpus silveiriano, o poema evocativo de Bernardin de Saint-Pierre. Eco também de Jorge Barbosa, o poema titularmente dedicado a Nemésio condensa, nos três versos a citar, a contrapartida poética da afirmação proferida por Pedro da Silveira, como crítico e antólogo: “a poesia de Nemésio sempre foi, não só bem entendível, mas ainda a ‘revelação’: a pátria insulana reencontrada em canto” (Antologia de Poesia Açoriana: 242). Homenageando embora a açorianidade na obra de Nemésio, os três versos que comprazem a primeira estrofe de «A Vitorino Nemésio» constituem também uma das afirmações poéticas mais notáveis do drama exílico da poesia silveiriana:

Olho para dentro dos teus poemas
E neles descubro as ilhas
De onde viemos, ficando lá.
(Laranjas: 15).

No que respeita à busca da ilha em espaços geográficos, em oposição a literários, como nos últimos dois poemas discutidos acima, temos o soneto «Alentejo, 15 Anos Depois», em que o Poeta recorre a uma das suas preferidas imagens contrastivas – o verde do mar do Continente vs. o azul do mar dos Açores – para tornar presente a ausência, na charneca alentejana, das suas ilhas:

Era um tédio de verde aquele verde
De rastos na charneca desolada...
[...]
(Minhas ilhas distantes – chão de lava,
húmido verde, e à roda o azul da água...)
(Laranjas: 196).

Tanta importância confere o Poeta à imagética dessas cores que a converte numa das epifanias resultantes do encontro momentâneo da ilha no Continente, ocasionado pelo avistar dum navio. O poema, datado de Ericeira, 24-VIII-1960, intitula-se precisamente «Reencontro da Cor». A sua primeira estrofe, num eco audível da «Ode Marítima», reza:

Até que enfim! Azul o vejo: azul, não verde,
Um mar azul até lá longe se ganhar mais longe.
E um navio – um navio verdadeiro, não sonhado –
atravessando (oh firmeza metálica!)
a estrada azul do seu destino mercantil.
(Laranjas: 203).

É um dos exemplos máximos, para este leitor, da busca da ilha no estrangeiro o poema «Fernando de Noronha», de Corografias (Silveira, 1985: 61) – em que a presença da ilha desse nome nem é percebida, mas tão-só pressentida, transferindo-se, assim, para um plano da realidade entre exterior e interior do exilado da ilha que, subtraída à perceptual concretude geográfica, não deixa, apesar disso, de surgir na consciência poética em toda a sua iluminada nitidez configuracional:

Voávamos por cima do mar
e mais e mais para nordeste.
E foi então que uma luz
tremeluzindo te inventou:

ilha na noite redonda
e mar à volta advinhado. (Laranjas: 61).

Constituem outros exemplos dessa busca da ilha no estrangeiro a série intitulada «Ilhas Avistadas», de Poemas Ausentes (Silveira, 1999: 30-35) – um corso turístico-poético que compreende seis poemas, sendo os primeiros quatro de particular interesse. O primeiro é «Outra Vez Porto Santo», datado de IX-1963 e «Aeroporto de Tenerife» –

Alturas de Tenerife
ainda há pouco avistadas,
cinzento, roxo, castanho...
Agora só tenho, azul,
o mar franzido, lá em baixo.

Notar o azul, já nosso conhecido como qualificativo predilecto para o mar das ilhas maternas do Poeta. O terceiro poema da série de «Ilhas Avistadas» é «Lantau», datado de 8-X-1979 – de que salientaremos dois pormenores: a proeminência dada, em primeiro lugar, à inevitável comparação com uma ilha açoriana e, em segundo lugar, a associação com a passagem de Portugueses por aquelas paragens:

Alta, longa de passar, fez-me lembrar S. Jorge.
Mas muito menos verde e sem ribeiras descendo-a.

Desta ilha, aonde não fui
(nem a Lamma ou Peng Chau),
O pouco que conheço, fora vê-la, ferozmente bela,
É ter lido que estiveram lá, mas poucos anos,
Os Portugueses quando chegaram a Macau.
(Poemas Ausentes: 32).

O quarto poema da série, «Amanhecer em Loma Alta», datado de Santa Bárbara (Califórnia) e Londres, 26/31-X-1985, proporciona ao sujeito poético a oportunidade de reflectir sobre acontecimentos históricos – como a sua possível descoberta por Cabrilho, a actividade religiosa de Frei Junípero Serra perante os índios. É, porém, a comparação com os Açores que se impõe, desta vez revestida e investida afectivamente de evocações de familiares emigrantes:

Há uma ilha ao longe, que não sei
Se é Santa Cruz ou Santa Rosa.
Meu pai falava era de Santa Catalina,
Aonde foi uma vez, e dizia que dava
Melancias tão boas que só no Corvo.
(Poemas Ausentes: 33).

É de notar ainda que esta série de poemas sobre ilhas leva a seguinte dedicatória: “À memória de Jorge de Sena, açoriano de Lisboa, que também emigrou e jaz à vista de ilhas, na Califórnia” (Poemas Ausentes: 30). A dedicatória reveste-se de especial importância, considerando não só as raízes açorianas de Sena, como o próprio autor de Sinais de Oeste aponta, mas a sua condição de exilado cuja poesia ficou marcada pela presença, ao longe, destas mesmas ilhas do canal de Santa Bárbara e que, sobre a praia donde elas se avistam, colheu inspiração para um das sequências poéticas de exílio e de amor mais importantes da literatura portuguesa do século XX. Refiro-me, claro está, a Sobre Esta Praia – Oito Meditações à Beira do Pacífico.

Considerações finais

Convenhamos que os momentos dramáticos de que se reveste a experiência migratória e exílica que aqui nos ocupou – começando com a(s) partida(s), repetidas veridicamente e poeticamente obsessivamente reiteradas – adquirem um grau de pungente drama que poderão surpreender, ou até atingir como pose meramente literária, quem alguma vez emigrou, como emigrante assalariado, para longes terras estrangeiras de língua e cultura diferentes da nossa, com poucas probabilidades de regresso senão a longuíssima distância, se de todo, e isto não só por consabidas razões económicas mas também para evitar o serviço militar. Pensemos nos casos de muitos jovens emigrantes açorianos que partiram das Ilhas (por exemplo, para os Estados Unidos e Canadá), quer na vaga emigratória de 1871 a 1920 (EUA), quer na mais modesta onda de 1951 a 1960, quer ainda na maior vaga de todas de emigração açoriana para a América do Norte (EUA e Canadá) que foi iniciada em 1961 e se prolongou até 1990 (cf. Williams, 2005: 111). Claro que ninguém, incluindo esses mesmos emigrantes, tem direito a questionar o facto de alguém poder sentir uma experiência migrante – ali para o Continente português, que fica a menos de mil milhas da mais distante das ilhas dos Açores, onde se fala a mesma língua e se vive a mesma cultura, embora uma e outra com leves modulações – como se fosse uma emigração para longínquas terras estrangeiras; ou, inclusive, como constituindo um exílio equiparável ao de dezenas ou centenas de portugueses de todo o país que, mais ou menos voluntária, ou mais ao menos involuntariamente, por razões de consciência, ou por perseguição ou medo de perseguição política, se ausentaram do seu torrão natal.

É de todos sabido como o grau de identificação com a freguesia, com a ilha se sobrepõe, no caso do açoriano comum (e Pedro da Silveira está longe de ser um açoriano comum), ao grau de associação e identificação com o país como todo colectivo. Para esse açoriano comum, migrar para o Continente constituiria uma experiência sósia da emigração para um país estrangeiro. E embora a experiência continental de Pedro da Silveira – iniciada em 1951, como já se indicou, e prolongada até à sua morte, em 2003, e profissionalmente adscrita às responsabilidades de funcionário da Biblioteca Nacional de Lisboa e a várias outras actividades relacionadas com a cultura, desde consultor literário a colaborador assíduo em revistas e jornais prestigiados – não pareça, à primeira vista, justificar, humana e existencialmente, o drama migratório e exílico representado na sua poesia, quem tem o direito de questionar, ou de pretender saber, o que terá sido, no mais íntimo da vida do homem e do poeta, essa experiência de açoriano ausente (Poemas Ausentes é, como vimos, precisamente o título de um dos seus livros de poesias)? E conquanto a poesia (ou qualquer outra documentação, por quanto eu sei) de Pedro da Silveira não patenteie uma perseguição política que o identifique como um exilado político interno – como o foi, por exemplo, um Torga – quem tem direito a questionar a sua sensação de exilado na sua própria terra – seja o Continente, sejam os Açores – numa época politicamente castrante, sobretudo no caso de um homem ideologicamente de esquerdas como Pedro da Silveira? E quem tem o direito de exigir que um homem tenha forçosamente de viver empiricamente as experiências e os sentimentos que poetiza ou a que dá vida numa obra literária, embora essa obra seja poesia e o “eu” da poesia lírica, como é sobejamente do conhecimento geral, e o “eu” empírico estejam (ou pareçam estar) mais próximos um do outro do que em outros géneros literários?

Finalmente, quem poderá contestar que migrações, emigrações, imigrações, e exílios (externos ou internos) haverá de tantos tipos quantos indivíduos haja que os concebam, desfrutem, sofram – ou poetizem?

Junho-Julho 2005

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Última actualização a 10.07.2007 Voltar ao topo