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BOLETIM DO NCH Nº 14, 2005
Maria Isabel João
Discursos sobre memória e identidade, a propósito do V Centenário do Descobrimento dos Açores
  Index
Sumário
Summary

Introdução
Conjuntura do Centenário Açoriano
Celebrações Oficiais
Discursos Identitários
Considerações Finais

Bibliografia
  Sumário: Este artigo é sobre a celebração do V Centenário do Descobrimento dos Açores, a qual foi realizada em 1932. Começa por analisar as origens das celebrações dos centenários e a sua importância no século XIX, quando se tornaram mais frequentes. Durante a Primeira República e no período da ditadura militar, entre 1926 e 1933, as comemorações dos centenários continuaram a ser realizados pelas elites e pelo poder. O V Centenário do Descobrimento dos Açores ocorreu num período conturbado a nível social e político e as comemorações foram seriamente afectadas pela mudança do governo e pelas dificuldades financeiras. A data escolhida também foi controversa, devido aos problemas para estabelecer, com rigor, o momento do descobrimento. Um documento histórico de capital importância como o mapa de Valsequa ainda não era, geralmente, reconhecido para efeitos de datação do acontecimento. Assim, continuava a considerar-se a data apontada por Gaspar Frutuoso para a chegada de Gonçalo Velho à ilha de Santa Maria, 15 de Agosto de 1532. Esta foi aceite como a data oficial do descobrimento dos Açores e as celebrações tiveram lugar nas principais ilhas por meados daquele mês. O artigo foca as práticas rituais e os discursos identitários produzidos durante as comemorações à luz do contexto histórico nacional e regional.
  Summary: This article is about the celebration of the 500 th anniversary of the discovery of the Azores which was held in 1932. It analyses the origins of centenary celebrations and their importance in the XIX century when they became more frequent. During the first Portuguese Republic and the military dictatorship regime between 1926 and 1933, centenary celebrations continued to be held by the elites and the power. However, the 500 th centenary of the Azores in 1932 took place during a period of social upheaval and political turmoil and, consequently, the celebrations were deeply affected by a change of government and by serious economic constraints. The date chosen was also a major source of controversy due to the difficulty in establishing the exact date of such discovery. Historical documents such as the map of Valsequa had not been yet recognized as the most accurate document on this issue. Given this situation, according to Gaspar Frutuoso, Gonçalo Velho arrived in Santa Maria on August 15 th, 1532, setting the beginning of the occupation of Azores by the Portuguese. This date was accepted as the official date for the discovery and the celebrations took place in the main islands according with this time frame. This article discusses the ritual practices and the identity discourses produced during the celebrations in light of the national and regional historical contexts.
  Maria Isabel João – Departamento de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Aberta. Rua da Escola Politécnica, n.º 147. 1269-001 Lisboa
 

Palavras chave: centenário, comemoração, nacionalista, regionalista, açorianidade. Key words: centenary, commemoration, nationalist, regionalist, «azoreanity».

Introdução

Não é possível estabelecer, de forma exacta, a origem das comemorações dos centenários. Porém, a tradição de se celebrarem aniversários e determinados períodos fixos de tempo é bastante antiga. Os hebreus celebravam o aniversário dos cinquenta anos como um jubileu – um tempo em que os direitos eventualmente perdidos eram restaurados, o que conduzia à remissão da servidão, das dívidas e das culpas. As civilizações clássicas atribuíram grande significado à celebração dos aniversários e os romanos chegaram a comemorar centenários. Mas foi com o advento do conceito de século, na época das Luzes, e com o progressivo ascendente que a História assumiu no imaginário das elites oitocentistas, que as comemorações dos centenários passaram a desempenhar um papel importante no conjunto dos rituais através dos quais as sociedades recordam a sua trajectória colectiva e inventam os símbolos que servem de ancoragem às suas identidades.

A partir de meados do século xix tornaram-se frequentes as celebrações dos centenários de grandes homens e de acontecimentos que se consideravam emblemáticos para a comunidade. Três centenários tiveram uma importância decisiva para a vulgarização deste género de evento: o centenário da declaração da independência americana, em 1876, o centenário da revolução francesa, em 1889, e o centenário do próprio século, em 1900 (Nora, 1992, III: 982). Naquela onda comemorativa se inseriram os centenários realizados em Portugal, desde o tricentenário da morte de Camões celebrado em 1880. Numa época de crise política e financeira, de incerteza e de pessimismo, os centenários que evocavam a época gloriosa da história nacional, nomeadamente os descobrimentos e as grandes navegações, pretendiam impor-se como um alento de esperança e de fé nas capacidades dos portugueses para construir um futuro melhor. Como rezava o Hymno do Centenário da Índia, de Fernandes Costa, em 1898, logo no primeiro verso:

Attentae, que o passado revive,
Portugueses dos tempos d’agora!
Nos rubores sanguíneos da aurora,
Novo dia rompendo vem já.
Vem de longe, do mar, do nascente,
Traz riqueza, ventura, alegria!
O presente, o presente o annuncia;
O futuro, o futuro o dirá!

O que o presente anunciava era a constituição de um novo império no «chão virgem da terra africana», um novo caminho de epopeias e de glória que libertaria o país da «apagada e vil tristeza» da decadência. As comemorações dos centenários dos descobrimentos serviam, assim, um duplo propósito nacionalista e imperialista, no qual se reviam monárquicos e republicanos.

O fim da monarquia constitucional não impediu que continuasse a haver celebrações de centenários, tanto mais que os republicanos tinham tido um papel decisivo no lançamento dessa ideia em Portugal. Contudo, a instabilidade política que caracterizou a I República portuguesa e a Grande Guerra, com as suas trágicas consequências, não tornaram as condições propícias para grandes comemorações nacionais. Com a implantação da Ditadura fizeram-se vários ensaios de comemorações, mas só em 1940 foi possível ao Estado Novo mobilizar o país no âmbito do Duplo Centenário da Independência e da Restauração. Estas comemorações representaram, por isso, o culminar de uma tradição e um momento áureo da propaganda ideológica do regime salazarista, sob a direcção de António Ferro.

Conjuntura do Centenário Açoriano

Ora, o V Centenário do Descobrimento dos Açores realizou-se em 1932, um ano antes da aprovação da nova Constituição que instituiu o Estado Novo, num período marcado por restrições orçamentais e por um discurso fortemente nacionalista. O centenário açoriano teve um antecedente próximo no da Madeira, realizado dez anos antes, numa data que não foi pacífica entre os investigadores. Também no caso dos Açores não havia a certeza sobre o ano do descobrimento e o nome do provável descobridor. As opiniões dividiam-se e a polémica foi intensa nos jornais, com António Ferreira de Serpa a evidenciar-se como opositor das celebrações naquela data (Republica, 1932: 7). Na sua opinião, a descoberta tinha sido anterior, provavelmente no reinado de D. Afonso IV, e não se sabia o nome do autor da proeza.

Havia quem defendesse que os Açores eram conhecidos desde a Antiguidade e atribuísse a proeza a marinheiros fenícios. Uma nebulosa história de moedas fenícias que teriam sido encontradas na ilha do Corvo, no século XVIII, vinha corroborar tal hipótese. Mais vulgarmente, contudo, admitia-se que uma parte das ilhas do arquipélago era conhecida desde o século XIV, porque apareciam referenciadas em várias cartas daquela época assinaladas pelo erudito Verlinden (Lisboa, 1994, I: 12). Os nomes não correspondiam aos actuais e derivavam do italiano, apontando assim para o papel que os navegadores provenientes da península itálica, provavelmente genoveses ao serviço de Portugal, poderiam ter tido no descobrimento. Outro elemento vinha ainda juntar-se à polémica: a carta de Valsequa, de 1439, onde constava o nome do descobridor – Diogo de Sunis ou Silves, segundo a leitura paleográfica mais consensual – e a data da descoberta – 1427. A posição geográfica das ilhas que aparecem nesta carta já é a correcta, muito distinta do enfiamento norte-sul que era tradicional nas cartas anteriores e que parece apontar para uma representação imaginária ou, então, muito imprecisa do arquipélago. Este documento acabou, mais tarde, por se impor para a datação do descobrimento oficial dos Açores, na época do Infante D. Henrique.

Todavia, no início dos anos 30, não foi essa a posição adoptada. Apesar das dúvidas e indefinições que continuaram a pairar sobre o descobrimento dos Açores, prevaleceu a data indicada por Gaspar Frutuoso para a chegada de Gonçalo Velho Cabral à ilha de Santa Maria, 15 de Agosto de 1432. O parecer da Secção de História da Sociedade de Geografia reconhecia como provável o conhecimento pré-henriquino dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, apesar de terem continuado fora das rotas dos navegadores e desabitados. Por isso, no século XV, houve um trabalho de redescobrimento e de povoamento que realmente os integrou na geografia humana, o que legitimava a realização do centenário na data indicada. Por sua vez, o almirante Gago Coutinho, uma reconhecida autoridade nestes temas, defendia que «Gonçalo Velho é aquele companheiro do Infante que mais razões tem a seu favor para lhe ficar pertencendo esta façanha» (Comemoração do Descobrimento dos Açores, s.d.:10). Ainda houve quem defendesse que em vez de centenário do descobrimento se falasse do povoamento dos Açores, visto que era essa a única certeza que podia inferir-se da crónica de Frutuoso (Diário da Manhã, 1932: 9). Mas a ideia não colheu muitos adeptos e os organizadores preferiram continuar a referir-se ao descobrimento.

Um dos primeiros a defender a ideia do centenário foi Gervásio Lima, escritor terceirense e colaborador assíduo da imprensa regional, logo em 1924 (Portugal, Madeira e Açores, 1924). Propunha, na altura, que se erigisse uma estátua de Frei Gonçalo Velho na primeira ilha desvendada, Santa Maria. A ideia da comemoração foi retomada mais tarde por outras figuras públicas, nomeadamente pelo marechal Gomes da Costa que estava deportado na ilha de São Miguel (Correio dos Açores, 17.7.1929). Na capital, o Grémio dos Açores associou‑se à iniciativa, vendo nela uma boa oportunidade para chamar a atenção do governo para os problemas insulares e para dar publicidade ao arquipélago. Em 1929, constituiu-se uma grande comissão para preparar as comemorações do centenário, na ilha de São Miguel, sob a presidência do governador civil. A larga representação das autoridades locais e a forma como muitas personalidades da vida micaelense se associaram à iniciativa mostravam bem o interesse que havia na organização do evento (Ibidem, 3.12.1929).

Os organizadores contavam que o poder central viesse a colaborar nos festejos e, por isso, a comissão reuniu com o Delegado Especial do Governo nos Açores, o coronel Silva Leal. Este era de origem açoriana e mostrou-se muito receptivo ao projecto (Ibidem, 11.12.1929). Comprometeu-se a tratar com o ministro das Finanças a questão do financiamento do centenário e a preparar com os outros distritos açorianos a melhor forma de articular os respectivos programas. Além disso, o Presidente da República já fora convidado a visitar as ilhas açorianas por altura das comemorações, previstas para meados de Agosto de 1932.

A deslocação do chefe de Estado era uma das grandes apostas dos promotores do centenário que viam nela uma excelente oportunidade para sensibilizar o poder central para as dificuldades do arquipélago. Por isso, o convite do coronel Silva Leal foi reafirmado com a deslocação dos representantes dos três distritos açorianos ao palácio de Belém para o mesmo efeito, em Maio de 1932. O general Carmona manifestou, na altura, o seu desejo de visitar as ilhas açorianas, mas referiu que esta deslocação teria de ser rápida porque a situação política não lhe permitia ausentar-se durante muito tempo da capital (Portugal, Madeira e Açores, 8.6.1932). Idêntico convite já tinha sido feito ao governo e as autoridades locais manifestaram, expressamente, interesse que os ministros da Marinha, da Agricultura e do Comércio integrassem a comitiva presidencial. Em princípio, os convites dos governadores civis dos distritos açorianos tinham sido aceites pela presidência e pelo governo. Mas a evolução da situação política inviabilizou a deslocação prevista e uma conjunção de factores adversos reduziu muito o alcance das comemorações. De tal modo que, em Julho, uns versos publicados pela imprensa local diziam em jeito de chacota (O Telégrafo, 9.7.1932):

Festinhas do centenário
(em tão pobres condições)
quem vos metesse no armário
das não-realizações!...

Vale a pena recuarmos um pouco para compreendermos a situação das Ilhas e os seus motivos de agravo contra os governos. Depois do movimento autonomista que congregara também a Madeira, a ilha de São Miguel manteve acesa a chama das reivindicações político-administrativas em relação ao poder central. Em 1925, as eleições foram disputadas por um Partido Regionalista que contava com o apoio dos sectores mais conservadores: Centro Católico, Causa Monárquica, Partido Radical, comissão política do Partido Nacionalista e vários independentes (Enes, 1996a: 74). Uma campanha bastante radical e de nítida oposição ao regime político vigente conseguiu mobilizar importantes sectores da população micaelense e eleger dois deputados - Filomeno da Câmara e Herculano Amorim Ferreira.

Nos outros distritos açorianos não se verificou a mesma mobilização em prol da autonomia. Em Angra do Heroísmo, as eleições decorreram dentro dos padrões habituais. Na Horta, o Partido Nacionalista metamorfoseou-se em Partido Regionalista e apresentou a candidatura do seu líder local, Manuel Francisco Neves Jr. Mas as eleições foram ganhas por um independente apoiado pelos Democráticos. São Miguel continuava a ser o epicentro das reivindicações autonómicas do arquipélago, tal como já acontecera no movimento autonomista do século xix.

Com o estabelecimento da Ditadura foi possível obter uma revisão do estatuto administrativo dos distritos insulares que vinha ao encontro das reivindicações mais moderadas. O decreto 15.035, de 16 de Fevereiro de 1928, alargou as competências e as fontes de receitas das Juntas Gerais, mas a subida ao poder de Salazar reduziu a margem de manobra financeira destes organismos, no quadro da política geral de contenção dos gastos públicos (dec. 15805, de 31 de Julho de 1928) (ver Enes, 1996a: 77-80). A breve trecho, os membros das Juntas Gerais constataram que a sua margem de autonomia estava cerceada pela falta de verbas. Em 1929, a comissão administrativa da Junta Geral de Angra do Heroísmo demitiu-se por considerar que não tinha condições para realizar as obras e os serviços necessários para o desenvolvimento do distrito e, no final de 1931, o presidente da Junta Geral de Ponta Delgada, Luís Bettencourt, tomou idêntica atitude (Idem, 1996a: 81).

No início da década de trinta, a situação social e económica das ilhas era muito difícil, devido não só às precárias condições estruturais mas também à grave conjuntura de crise que afectou duramente todo o mundo ocidental. O desemprego e a miséria das populações insulares causavam preocupação às autoridades locais. O encerramento da emigração no pós-guerra e os cortes orçamentais, que obrigaram a paralisar muitas obras públicas, deixaram elevado número de famílias sem possibilidade de garantir a subsistência. Alguns sectores da economia tinham de enfrentar grandes dificuldades para escoar os seus produtos, debatendo-se com a retracção dos mercados provocada pela crise, com a baixa dos preços e com as consequências negativas da aplicação das políticas financeiras e monopolistas dos governos.

Em 1931, o caso do «monopólio das farinhas» esteve na base da revolta dos madeirenses e do apoio popular ao levantamento militar promovido pelos deportados (Reis, 1990; Enes, 1980: 29-38). O movimento estendeu-se aos Açores, onde também viviam muitos opositores que tinham sido desterrados para as ilhas pela Ditadura. Apesar da agitação, a revolta dos deportados não teve a adesão das populações que se verificou na Madeira. Nesta ilha tinha-se constituído uma Junta Revolucionária, presidida pelo general Sousa Dias, que enviou ao Presidente da República um telegrama dizendo que assumira o governo da Madeira e que só reconheceria um governo que restabelecesse no país a normalidade constitucional. A notícia chegou às ilhas açorianas e houve um movimento de solidariedade com a Madeira, ao mesmo tempo que crescia a esperança numa mudança da situação política, com a extensão do rastilho da revolta ao continente. Com o apoio de algumas chefias militares, foram tomados quartéis e estabelecimentos oficiais nas ilhas de S. Miguel e da Terceira. Em seguida, foram criadas Juntas Revolucionárias em Ponta Delgada e Angra do Heroísmo. O governo ditatorial reagiu de forma rápida e eficiente, e depois de controlar a agitação no continente, enviou contingentes militares para as ilhas dos Açores, onde a situação foi dominada praticamente sem resistência. Cerca de um mês depois do início da sedição, o comando militar da Madeira reconheceu a superioridade numérica e material das forças governamentais e decidiu também render-se para evitar mais vítimas civis.

A memória destes acontecimentos ainda estava bem fresca e as celebrações do centenário poderiam ser o ensejo para aproximar as autoridades centrais dos problemas açorianos. Em 1932, duas questões de fundo estavam na ordem do dia: a unificação da moeda e o projecto de desenvolvimento do turismo. A moeda insulana ou fraca possuíra um valor, em média, 25% inferior à que circulava no continente. Desde o final do século xix que havia o projecto de unificar a moeda, mas este propósito esbarrava na resistência das populações em pagarem os impostos mais altos, isto é, de acordo com o valor da moeda forte. Porém, a diferença de valor causava transtornos nas relações comerciais com o continente, devido às constantes oscilações dos câmbios, e havia sectores da sociedade açoriana interessados na resolução definitiva do problema. Por isso, o decreto 19.869, de 2 de Junho de 1931, que unificou a moeda acabou por ser facilmente imposto por Salazar, apesar da conjuntura económica desfavorável para a maior parte dos contribuintes açorianos ter justificado medidas adicionais. O decreto 21.189, de 2 de Maio de 1932, estabeleceu uma dedução nas contribuições e impostos pagos nas ilhas, nomeadamente para aqueles que, por lei ou contrato, estivessem referidos à moeda insulana.

Por outro lado, o desenvolvimento do turismo era uma velha aspiração dos açorianos. Na ilha de São Miguel, o exemplo da Madeira era seguido com atenção pelos empresários e as autoridades locais que viam nesta nova indústria uma alternativa para a economia insular. Precisamente, no mês da publicação do decreto que unificou a moeda foi nomeada uma comissão para estudar o problema e propor as medidas necessárias para o aproveitamento daquela ilha como centro turístico (Enes, 1993: 516). O relatório dessa comissão procurou enquadrar o turismo no âmbito das competências das Juntas Gerais Autónomas e reavivar a questão das atribuições de verbas destinadas aos corpos administrativos dos distritos insulares. Nos termos da proposta, competiria à Junta Geral mobilizar os meios financeiros para lançar as infra-estruturas necessárias ao arranque do turismo, inclusive através da construção ou adaptação de edifícios com essa finalidade. As receitas públicas serviriam, assim, para dinamizar os investimentos necessários ao desenvolvimento da actividade turística, substituindo-se à iniciativa privada que temia o elevado risco financeiro do projecto. Mais tarde, no caso de haver empresas interessadas, os edifícios adaptados ou construídos passariam para a gestão privada, a troco de uma indemnização compensatória para as Juntas (Comércio dos Açores, 1932). Em torno da questão do turismo desencadeou-se uma campanha que mobilizou a população da cidade de Ponta Delgada e agitou os ânimos.

Aliás, o ambiente político estava bastante tenso naquele ano. Ao nível nacional, a crescente supremacia política do ministro das Finanças levou o presidente do Ministério, general Domingos de Oliveira, a pedir a demissão a 24 de Junho. O governo que o substituiu já era presidido por António de Oliveira Salazar, o primeiro civil a ocupar o cargo desde o golpe militar de 1926. Nestas circunstâncias, o Presidente da República decidiu cancelar a sua visita aos Açores. Os governadores civis de Ponta Delgada e de Angra do Heroísmo foram substituídos na sequência das mudanças políticas (Correio dos Açores, 29.7.1932). A organização das comemorações parecia, deste modo, estar comprometida pela falta de interesse do poder central que não tinha disponibilizado verbas para o efeito, pelo cancelamento da visita presidencial e pela desmotivação das forças vivas locais que viam reduzir-se o alcance da sua iniciativa.

A 5 de Agosto, um abalo de terra, que afectou a ilha de São Miguel, provocando a derrocada de casas e alguns feridos, ainda veio piorar as coisas. O concelho da Povoação foi o mais atingido pelo sinistro e as comemorações ficaram irremediavelmente ensombradas. Tudo parecia conjugar-se para criar obstáculos às comemorações do descobrimento do Açores.

Celebrações Oficiais

Apesar disso, as autoridades não quiseram deixar de assinalar a efeméride. Com a modéstia imposta pelas limitações financeiras e sem o carácter festivo, as celebrações do centenário tiveram lugar em várias ilhas, na segunda quinzena de Agosto. O governo enviou o cruzador Vasco da Gama, comandado pelo capitão-de-mar-e-guerra António da Câmara Velho de Melo Cabral, de origem açoriana e ainda descendente de Gonçalo Velho, para o representar nos eventos.

As comemorações iniciaram-se em Santa Maria, a 15 de Agosto. Estenderam-se, em seguida, às três capitais de distrito do arquipélago e culminaram em Vila Franca do Campo com a inauguração de uma estátua dedicada ao Infante D. Henrique, do escultor Simões de Almeida. Foram pautadas pelas cerimónias solenes promovidas pelas autoridades locais. As tradicionais sessões solenes, a inauguração de padrões, uma lápide, uma exposição, cerimónias religiosas e algumas manifestações mais populares, como provas desportivas, iluminações e concertos de bandas de música, assinalaram o quinto centenário do descobrimento dos Açores. Em Vila Franca do Campo organizou-se um cortejo cívico e histórico, onde desfilaram as escolas do concelho, representantes das várias classes sócio-profissionais, das associações e das autoridades, os oficiais do cruzador Vasco da Gama e um batalhão de infantaria (Ibidem, 30.8.1932). No fim do desfile seguiam a comissão do centenário e as chefias da Câmara Municipal.

A nota regionalista esteve presente de várias formas no decurso das comemorações. Como se dizia em versos então divulgados:

Muito se vem falando em tais [festejos
que uns querem de
carácter [nacional,
mostrando outros, porém, grandes [desejos
de lhes dar o
cunho regional.
(O Telégrafo, 11.6.1932)

As autoridades locais não se coibiram de chamar a atenção do representante do governo para a necessidade de promover os necessários melhoramentos públicos e para as «justíssimas aspirações» dos açorianos que tinham visto reduzir-se a margem de autonomia efectiva das Juntas Gerais (Ibidem, 17.8.1932). O governador civil da Horta pediu, de forma directa, ao comandante António Cabral: «ide dizer-lhe, senhor, que encontraste nove ilhas que necessitam do amparo da Pátria, que algumas ainda estão como há 500 anos sem uma estrada, que as suas crianças não têm escolas onde melhor aprendam a amar o País [... ]» (Ibidem, 27.8.1932). Não se esquecendo de referir a necessidade de leis para a protecção da agricultura e de comunicações mais rápidas e eficientes, que tirassem as ilhas do isolamento.

A questão administrativa continuava presente e num artigo, publicado no número comemorativo feito pelo jornal O Século, encontrámos expressa a reivindicação do distrito de Ponta Delgada para que fosse aplicado o decreto de 31 de Julho de 1928 (O Século, 1932). Essa lei da responsabilidade de Salazar transferira para as Juntas Gerais diversos serviços, sem o aumento correspondente dos recursos. Na altura, suscitou reservas e críticas (Enes, 1996a: 79), mas passados alguns anos já era considerada uma base para as reivindicações, visto que nem ela estava a ser aplicada no quadro da política fortemente centralizadora dos governos. Por isso, em jeito de conclusão, o jornalista afirmava que o momento em que se comemorava o quinto centenário do descobrimento seria o mais azado para o governo dar ao regime da autonomia administrativa os meios adequados para o progresso dos Açores. De forma explícita, pretendia-se que, pelo menos, a lei vigente fosse aplicada, com a transferência de verbas necessárias para viabilizar a acção das Juntas Gerais.

A par das comemorações açorianas, realizaram-se no continente várias cerimónias. O «Dia dos Corte Reais» foi assinalado no mês de Julho de 1932, por iniciativa da Sociedade de Geografia de Lisboa (Portugal, Madeira e Açores, 8.7.1932). O cônsul português em Providence foi um dos que acarinhou a ideia de chamar a atenção para as navegações dos Corte Reais. Gilberto Marques tinha conhecido o professor Edmond Delabarre no exercício das suas funções diplomáticas e era um defensor da tese da prioridade portuguesa na descoberta da América, baseada na interpretação feita pelo professor americano das inscrições da Pedra de Dighton. O professor da Brown University, interessou-se por decifrar as inscrições encontradas num rochedo das margens do rio Tauton, entre as cidades de Fall River e de Tauton. Estas suscitaram ao longo do tempo as mais variadas e contraditórias interpretações. O investigador americano escreveu vários artigos sobre o assunto e, em 1928, saiu uma obra onde expunha a sua controversa interpretação das inscrições (Delabarre, 1928).

O coronel Roma Machado, António Cabreira e o próprio Gilberto Marques foram os oradores da sessão realizada na Sociedade de Geografia. Num talhão da Avenida da Liberdade, inaugurou-se uma placa com uma inscrição alusiva aos feitos atribuídos a João Vaz Corte Real e a seus filhos, Gaspar e Miguel, que contou com a presença do Presidente da República e uma guarda de honra composta por uma companhia da Marinha e a banda de Caçadores 7 (Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1932). A Casa do Algarve e o Grémio dos Açores também promoveram sessões solenes, seguidas de bailes de gala, em honra dos Corte Reais. O Algarve orgulhava-se dos Corte Reais serem oriundos daquela província e os Açores não esqueciam a sua ligação às capitanias de Angra e de São Jorge, bem como o papel que tinham desempenhado nas navegações para o Ocidente.

Só no ano seguinte a Sociedade de Geografia, o Club Militar Naval e o Grémio dos Açores comemoraram o descobrimento das ilhas com sessões solenes. O facto do centenário ocorrer numa quadra de vilegiatura foi a razão invocada para o adiamento das sessões solenes realizadas na capital (Portugal, Madeira e Açores, 23.3.1933). Na Sociedade de Geografia de Lisboa, os oradores mais destacados foram o ministro da Instrução, que defendeu a tese do descobrimento pré-colombino da América, e o almirante Gago Coutinho. O presidente da Sociedade, na qualidade de anfitrião, e o tenente-coronel Linhares de Lima, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, natural dos Açores, também usaram da palavra, na sessão realizada a 5 de Fevereiro de 1933 (Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1933) naquela instituição, que tinha estado ligada de forma estreita aos eventos comemorativos da expansão portuguesa.

O Grémio dos Açores só veio a realizar a sua sessão a 20 de Maio do mesmo ano, aproveitando o ensejo de chegar a Lisboa o primeiro navio da nova esquadra portuguesa a que foi dado o nome de Gonçalo Velho. Presidiu ao evento o comandante-geral da Armada, em representação do ministro da Marinha. O governador civil de Ponta Delgada, Jaime do Couto, e o presidente da direcção do Grémio dos Açores, Félix Machado, acompanharam-no na mesa da sessão. O comandante e a oficialidade do navio de guerra também estiveram presentes. A noite terminou com um baile de gala que se prolongou pela madrugada (Portugal, Madeira e Açores, 23.5.1933).

Apesar das polémicas e do desinteresse do poder central, as comemorações açorianas tiveram maior expressão em termos nacionais do que tinham tido as madeirenses, em 1922. Às sessões promovidas pelas várias entidades referidas juntaram-se diversas edições especiais feitas pelos periódicos da capital, especialmente dedicadas ao centenário açoriano (cf. Diário de Notícias, O Século, Diário da Manhã, Diário de Lisboa, A Voz, Novidades e o Portugal, Madeira e Açores, do mês de Agosto de 1932). A efeméride não passou, assim, completamente despercebida a nível nacional.

Discursos Identitários

As comemorações são momentos privilegiados para a produção de discursos sobre a identidade nacional, amplamente veiculados pelos meios de comunicação disponíveis em cada época. Mas nos centenários dos descobrimentos da Madeira e dos Açores verificou-se uma sensível alteração da perspectiva dos discursos, do plano nacional para o regional. Além disso, as reivindicações autonomistas estavam em qualquer dos arquipélagos bem vivas e tinham por base ideias e sentimentos que confluíam em representações sobre a identidade dos ilhéus. Em geral, não era posta em causa a origem maioritariamente portuguesa dos madeirenses e dos açorianos, que em ambos os casos se consideravam parte indissociável do conjunto da nação e tão portugueses como os continentais. Mas os discursos comemorativos centravam-se, naturalmente, nas ilhas quando se referiam à terra, nos açorianos e nos madeirenses quando falavam do povo e do seu passado. Os enunciados apresentavam uma perspectiva realmente simétrica dos discursos nacionalistas produzidos nas comemorações realizadas no continente. Assim, onde geralmente se lia Portugal e Portugueses, nos Açores e na Madeira apareciam as ilhas e as respectivas populações, o que conferia uma nota regionalista à retórica comemorativa.

As comemorações madeirenses foram dominadas pela preocupação da promoção turística do arquipélago e contribuíram para divulgar a imagem de um «jardim encantado», notável pela uberdade do solo, pelos seus óptimos vinhos, pela suavidade do clima e pelas belezas naturais (Quinto Centenário do Descobrimento da Madeira, 1922: 12). A designação de Pérola do Atlântico transformou-se na imagem de marca da ilha e na expressão do orgulho dos madeirenses em relação à sua terra (O Século, 1922). Quanto à origem dos madeirenses considerava-se que a presença dos portugueses tinha sido dominante e a importância dos escravos negros era desvalorizada, apesar de se reconhecer que foram abundantes na ilha da Madeira. Deste modo, defendia-se que os madeirenses não podiam «renegar a Pátria pela razão natural de não poderem negar a Raça» (Quinto Centenário do Descobrimento da Madeira: 37). O Diário da Madeira (1919) referiu-se, aliás, à «aguerrida sub-raça insular, cruzada de mistura de sangue estrangeiro» que tinha dado sobejas provas de valentia e de radical patriotismo ao longo da história. A reivindicação da autonomia, somente administrativa ou também política, consoante as vozes, não pretendia ser uma ruptura com o continente, mas a afirmação da especificidade insular no contexto nacional, como se reiterava num texto de M. Pestana Reis, inserido na obra dedicada ao centenário (Reis, 1922: 36-38).

Por sua vez, as comemorações dos Açores deram lugar à publicação de alguns textos fundamentais em torno da memória e da identidade regional. Em 1928, o escritor terceirense Gervásio Lima publicou A Patria Açoreana, com o objectivo expresso de comemorar o quinto centenário do descobrimento dos Açores. A pátria é a «terra-mater» e usa o termo no seu sentido original para expressar a terra onde nasceu e que foi o seu berço. A pátria açoriana é, na sua visão, um «título carinhoso, sintetico da Pátria Portuguesa», uma forma de expressão condensada e sublime das virtudes nacionais que encontraram, naquelas ilhas, as condições ideais para se desenvolverem. Por isso, começa por enaltecer globalmente a terra açoriana. Depois debruça-se sobre cada ilha e sobre as suas belezas naturais, para caracterizar, em seguida, o açoriano como tipo genérico. A mulher merece um capítulo específico e termina com o vasto rol dos heróis que ilustram a história insular: navegadores, apóstolos, santos, homens das letras, das ciências e das artes. Recorre ao longo da obra a citações de muitos autores e viajantes para melhor demonstrar a excelência da terra e da gente dos Açores. E muitas vezes a melhor forma que encontra de exprimir os seus sentimentos é através dos poetas locais e das rimas populares - «Terra do meu orgulho e ultimo bem que espero / Mãe de Bento de Goes e mãe de santo Antero» (Lima, 1989: 68).

No retrato dos açorianos, traçado por Gervásio Lima, facilmente reconhecemos elementos que estavam presentes no discurso nacionalista da época sobre as características dos portugueses. Considera, aliás, que o povo açoriano é «descendente dos melhores cavaleiros d’Africa, dos heroicos portuguezes que, nas regiões selvaticas e barbaras, ganharam seus titulos de nobresa» (Idem: 100). Conservaria ainda as virtudes ancestrais da «raça» e as qualidades da velha alma portuguesa. «Trabalhador e crente, laborioso e honesto, respeitador e simples», os açorianos teriam sabido dar em todas as épocas históricas exemplos inexcedíveis da sua «fé patriotica, do seu arrojo indomavel, da sua valentia heroica» (Idem). É o tipo do português anterior à degenerescência provocada pela riqueza fácil, aquele que desbravou as ilhas e foi colonizar outras regiões com o seu suor, nomeadamente o Brasil. Povo «firme e leal» que esteve ao lado do Prior do Crato e contra o domínio filipino; povo «ousado» que navegou para o Novo Mundo com os Corte Real; povo que se uniu a D. Pedro para implantar a «liberdade» em Portugal; «povo maleavel, indomito e docil, que soluça trovas nas notas dolentes de uma viola, improvisa nos serões e arraiaes; mas ruge e troveja nas horas indecisas ou ameaçadoras da patria e da liberdade» (Idem: 110). O povo açoriano não se define, segundo Gervásio Lima, pela diferença em relação aos outros portugueses, mas por ser o lídimo representante do que há de mais genuinamente português, ancestral e elevado na alma da nação.

O povo açoriano, supostamente isolado nas suas ilhas no meio do Atlântico, teria conservado as características originais dos portugueses da segunda metade de Quatrocentos. Reencontrámos esta ideia em Vitorino Nemésio e Luís da Silva Ribeiro (cf. João, 1996a: 106). Por sua vez, a mulher açoriana é «bem digna companheira do ilheu trabalhador e sobrio». Mas é também essa Brianda Pereira que deu luta aos exércitos castelhanos, brava padeira de Aljubarrota terceirense, ou a D. Violante do Canto que colocou a sua fortuna à disposição da causa do Prior do Crato. Nos capítulos seguintes, Gervásio Lima empenha-se em redimir do esquecimento as mais variadas figuras que têm em comum o facto de terem nascido nas ilhas açorianas. Algumas delas são figuras efectivamente distintas, mas a maioria não consegue sair da obscuridade, apesar dos esforços denodados do escritor. O estilo de Gervásio Lima é ultra-romântico e francamente hiperbólico. E nesta ordem de ideias remata em jeito de síntese: «Os portuguêses são o maior povo do universo, escreveu o grande tribuno Bluteau»; «Os Açoreanos são das maiores glorias de Portugal, acrescenta o grande dramaturgo D. João da Camara» (Lima, 1989: 261). Não é ele que o afirma, o modesto relator da excelência da pátria, mas outros com mais autoridade para o efeito.

Uma ordem de ideias muito semelhante segue Armando Narciso na sua «monografia romântica» sobre a Terra Açoreana (Narciso, 1932), que dedica à memória dos primeiros que povoaram as ilhas. Começa por identificar os Açores como uma «Pequena Pátria», uma região inconfundível no conjunto das províncias portuguesas. A beleza natural e as magníficas paisagens açorianas deixam na sua «alma um repouso suave e bom». Além disso, as qualidades do povo contribuem para traçar um quadro idílico, de simplicidade rústica, laboriosa e honesta, em que os costumes antigos são preservados, mercê do isolamento dos ilhéus. «Tenaz e pachorrento, o Açoreano é - na sua opinião - um modelo de perseverança e trabalho». O mito da Atlântida e outras lendas identificam os Açores com o paraíso perdido e corroboram a imagem de «terras abençoadas, onde a vida corria santa e sem pecado». Com a chegada dos Portugueses e dos primeiros povoadores, no tempo do Infante de Sagres, os Açores passaram a estar inseridos na história de Portugal e a acompanhá-la nos momentos difíceis e de glória. O cunho aventureiro e o êxodo, provocado pela emigração, marcam ainda a realidade açoriana: «Os míseros, os tristes aventureiros lá vão, abanando com os lenços, acenando com os chapéus. Descuidados na rotina da sua cultura, no atraso da sua indústria, eles vão sem preparo, ao abandono de tudo e de todos, sem um Govêrno que os proteja, sem instrução práctica que os arme». No retrato idealizado da sociedade açoriana feito pelo autor, é esta a única nota que aponta para os reais problemas daquele pequeno universo marcado pela pobreza, pelos baixos níveis de escolaridade e pelo reduzido desenvolvimento económico e social.

A par destas obras de Gervásio Lima e de Armando Narciso, que traduzem bem um certo imaginário das minorias letradas dos Açores, sobressaem mais dois textos realmente dignos de nota, no número especial da revista Insula: o artigo de Vitorino Nemésio, onde foi cunhado o termo açorianidade, e outro de um dos patronos dos movimentos autonomistas, o advogado micaelense Aristides Moreira da Mota (Insula (1932), 7 e 8: 59 e 65).

O curto artigo de Nemésio é, nas suas próprias palavras, «uma colaboração estritamente sentimental», uma página emotiva onde procurou alinhar o essencial da sua consciência de ilhéu. Afinal, a consciência da singularidade e da solidão de quem nasceu rodeado pelo mar, uma espécie de «embriaguez de isolamento que impregna a alma e os actos de todo o ilhéu». Se como homens, os açorianos estão soldados ao povo donde vieram, pela vivência nas ilhas enraizaram-se em montes de lava que soltam das próprias entranhas uma substância que os penetra. Assim, Nemésio afirma que «a geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes».

Os Açores são, na perspectiva do escritor, «um autêntico viveiro de lusitanidade quatrocentista» e não se diferenciam pela origem étnica ou pela história, mas pela insularidade e as condições específicas do meio natural que teve uma influência decisiva no modo de ser açoriano. Estas ideias não eram uma novidade na época e correspondiam a noções correntes que se prendiam com as concepções do determinismo geográfico, mas a pena inspirada do escritor e o seu estatuto intelectual conferiram uma importância excepcional ao seu texto. De modo geral, todos os açorianos cultos o conhecem par coeur e a sua citação tornou-se de tal forma recorrente no discurso de identificação regional que podemos considerá-lo como um documento fundador. Mas o próprio Nemésio tinha consciência que o assunto precisava de ser desenvolvido e prometeu que um dia, depois das obrigações da vida civil já cumpridas, tentaria um ensaio sobre a sua «açorianidade subjacente que o destêrro afina e exarceba». Uma promessa que as voltas e reviravoltas da vida não lhe permitiram cumprir. É anterior a este artigo uma conferência proferida em Coimbra sobre «O Açoriano e os Açores», publicada em Sobre os signos de agora (Nemésio, 1932a). Quatro anos mais tarde, Luís da Silva Ribeiro escreveu os Subsídios para um ensaio sobre a açorianidade, onde procurou analisar de forma mais sistemática, sem deixar de ser impressionista, os efeitos da influência do meio sobre os ilhéus (Ribeiro, 1983: 515-556).

O texto de Aristides da Mota, publicado na revista Insula, não teve tanto impacto como o de Nemésio, mas não deixa de ser igualmente significativo. Sob o sugestivo título Ilhas dos Açores, Cárceres Floridos, começa por imaginar os primeiros colonos que se fixaram nos Açores, «alguns deles pertencentes a famílias nobres, gozando de situações privilegiadas». Para se isolarem nas ilhas, tinham de possuir uma «admirável paciência», «tenacidade» e «faculdades de adaptação». Para resistir ao apelo da saudade e desbravar o arquipélago, quanta «força de vontade», quanto «espírito de sacrifício» e quanta «abnegação» não teriam sido necessários aos primitivos habitantes do arquipélago. As qualidades dos açorianos foram, por conseguinte, forjadas nesses tempos heróicos do povoamento, que moldaram um amor entranhado pelas nesgas de terra onde vivem e onde esperam descansar para a eternidade. E Aristides da Mota imagina as ilhas como «cárceres floridos e embalsamados, onde é delicioso repousar» e onde também conta «ficar deitado para sempre». A ilha é, deste modo, simultaneamente prisão e sepultura, local de esquecimento e de alheamento do mundo, com algo de embalsamado e, ao mesmo tempo, de balsâmico para o espírito.

Considerações

Finais Em síntese poderíamos dizer que o discurso sobre a identidade regional desenvolve-se em torno de temas de ordem sentimental, de emoções e de memórias que se prendem com as origens e os momentos considerados fulcrais de um percurso histórico que define o querer colectivo de uma comunidade. Tanto nos Açores como na Madeira essa memória, paulatinamente construída desde o século XIX pelas elites locais sob o influxo da historiografia nacional, acentua a ligação histórica das ilhas à nação portuguesa, o que mais uma vez ficou demonstrado nas comemorações dos centenários do respectivo descobrimento. Todavia, a especificidade da condição insular dá lugar a um discurso sobre nós em que a dimensão regional ou mesmo local se sobrepõe à nacional. Por isso, a ideia de pátria reencontra-se em pleno século XX com a noção ancestral de terra mater, local de nascimento e de vida, fonte de referência para a afirmação de uma identidade distinta, de uma singularidade que é por si mesma um motivo de orgulho e de celebração.

Bibliografia

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Última actualização a 11.07.2007 Voltar ao topo